segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

             
                 Capítulo 3

                 A cena do crime


Ele entrou naquela sala de maneira despreocupada. Até parecia que estava examinando as vitrines de uma loja. As mãos nos bolsos da calça jeans preta, o olhar despreocupado e o andar totalmente aleatório. Eu ainda um tanto insegura, entrei seguindo sua sombra, o usando como um escudo para minha incerteza. Não era uma situação comum para mim, e confesso que a apreensão sobrepujava minha excitação.
Uma chuva começou a precipitar-se preguiçosamente lá fora, e o vento gélido uivava, reclamando seu lugar na paisagem. Calçamos protetores nos sapatos, e pares de luvas que nos foram entregues por um policial à paisana que vigiava a porta. Atravessamos a sala onde espessas cortinas cobriam a enorme janela com vista para a rua. Pude reparar os móveis caros e de mau gosto ao meu redor. Dirigimo-nos a um corredor localizado à direita de quem entra, na parede à frente. Neste corredor, ao lado esquerdo, uma ampla abertura dava passagem para a cozinha.  Do lado direito mais à frente, duas portas, e mais uma ao fundo deste corredor. Os quartos e um banheiro. - supus naturalmente. A primeira porta em que Gross olhou era o banheiro. Assim que ele voltou ao corredor, olhei curiosa.
Lascas e farpas de madeira se afogavam em poças e respingos de sangue que se sobrepunham numa pintura grotesca e nauseante. Ainda pude perceber oque me pareceu ser um punhado de cabelos loiros em meio ao piso escarlate. Retornei horrorizada, e voltei a seguir meu amigo de perto.
Chegando à porta do segundo quarto, ele parou sob o batente. Eu logo atrás, tentava olhar para dentro do aposento pelos lados de seu corpo, mas não conseguia.
– Ah! Finalmente você chegou! – disse alguém de dentro do quarto com um tom de voz que denotava o mais puro alivio. Gross avançou lentamente, virando a cabeça para os lados, para cima e para baixo.
– Odeio viajar. Você sabe. – disse Gross num tom desanimado. Eu o segui quarto adentro. E me contive pra não fazer uma cena quando vi o motivo que nos trouxera ali. É claro que eu já esperava algo do gênero, mas entre ter ideia de algo, e ver com meus próprios olhos, havia uma colossal diferença.
– É, eu sei Gross. Desculpe-me, mas foi necessário. - respondeu o homem que agora eu podia ver.
Tratava-se do delegado Carlos Teixeira, que eu vira horas atrás em São Paulo.
– Delegado, esta é Alessandra, minha assistente. – apressou-se Gross em explicar minha presença.
– Olá Dr. Teixeira, é um prazer. – disse eu reservadamente.
– Muito prazer Alessandra. – respondeu ele apertando minha mão gentilmente.  
Havia mais um homem no quarto além do delegado. E parecia não ter ficado muito feliz com a intromissão.
– E então Carlos, oque eu posso fazer por você que este capaz senhor da perícia não pôde? - perguntou Gross.
O homem levantou a cabeça rapidamente, e fez seu olhar saltar de Gross para o delegado, obviamente ofendido. Teixeira olhou-o com uma cara de quem pedia paciência. Embora eu percebesse tudo a minha volta, não conseguia fazer meu olhar se desvencilhar do impulso de olhar oque estava no meio do quadrado que formamos com nossas posições. No quarto, à esquerda da porta, havia uma cama de casal. Esta tinha sua lateral afastada cerca de um metro de uma das paredes. Do outro lado, entre a cama e a janela, um tapete com desenhos exóticos, de uns dois metros de largura por dois e meio de comprimento. Havia um criado mudo em ambos os lados da cama. E acima dela, um quadro horroroso com uma imagem do que pareciam ser tigres lutando. Na parede oposta, um armário com portas de vidro abrigava algumas armas de fogo antigas, facas e punhais, aparentemente da mesma época. A janela era de alumínio, bem ampla. As cortinas, de um tecido muito bonito e caro, estavam cerradas. Mas o principal estava ali aos pés da cama. Uma pequena mesa de madeira ladeada por duas banquetas. Numa delas, totalmente inanimado, jazia o corpo de uma mulher.
Eu continha a todo custo a vontade de levar a mão à boca, mas ao mesmo tempo, me mexia vagarosamente para não perder nenhum detalhe da cena. E Gross parecia fazer o mesmo. Girava o corpo sem sair do lugar esquadrinhando o quarto com seu olhar. E chegou a dar uma olhada em baixo da cama, levantando o lençol com uma das mãos.
Antes que eu pudesse especular a idade da vítima, o delegado Teixeira interrompeu meus pensamentos.
– O chamei aqui porque este é um caso que precisa de sigilo, como já lhe disse. – falava ele para Gross. – Esta mulher…
– Tem entre trinta e oito e quarenta e três anos, não mais que isso. – interrompeu Gross – Problemas conjugais, alcoolismo, fumante, viciada em chocolate… - neste ponto ele parou por um instante de falar enquanto andava pelo quarto vagarosamente. Percebi o tal perito mostrar-se mais interessado em meu amigo.
– Personalidade um tanto infantil, – prosseguia Gross – ou mimada mesmo, como vocês preferirem. Um tanto narcisista e bastante autoritária.
Teixeira o olhava com um risinho nos lábios, ao mesmo tempo em que de vez em quando, desviava o olhar para o perito, que talvez não tenha percebido, mas estava com a boca semiaberta. Então Gross afastou-se do corpo. Parou ao lado da cama, colocou a mão esquerda no bolso da calça e a direita na nuca, com a cabeça meio abaixada. E sorriu quase imperceptivelmente. Desfez a pose e colocou as mãos nos bolsos do sobretudo. Então olhou novamente para o corpo. 
– O assassino atirou primeiro em sua perna, depois em seu coração. Isto aconteceu no banheiro, é claro. Então a trouxe até o quarto e a colocou onde está…
– Que absurdo! - exclamou o perito. Como você poderia saber que ela foi atingida primeiro na perna e depois no peito? Poderia muito bem ter sido o oposto. - afirmou ele com decisão.
Nesse momento imaginei que iria começar uma ferrenha discussão à cerca de métodos, com frases e palavras que eu desconhecia. No entanto, tudo que Gross fez, foi levantar vagarosamente os olhos para Teixeira. Um olhar dos mais desanimados e preguiçosos que já vi. O delegado deu de ombros. Gross olhou para o perito de cima a baixo. Voltou a mirar seus olhos e disse:
– Eu poderia lhe ensinar o seu trabalho, mas sinceramente eu não estou com a mínima energia para isso. E se não se importar em não me interromper mais, prometo que termino logo, assim você poderá voltar a examinar a cena e tirar suas próprias e errôneas conclusões.
Eu me contive para não rir. O perito, por outro lado, encolerizou-se. Sua face ficou rubra e seus músculos crisparam-se. E quando parecia que uma altercação seria inevitável, Gross disse:
– Ah, por favor! Não vamos partir para agressão física. Eu sei que o senhor é um excelente perito criminal, que já esteve em inúmeras cenas de crime como esta. Mas acredite! Este crime é especial; do contrário eu não estaria aqui. E digo isso não porque sou convencido, e sim pelo fato de que se este crime não tivesse os detalhes interessantes que tem, como acabei de comprovar, eu não teria aceitado investiga-lo.
Foi incrível como Gross inseriu sorrateiramente elogios ao trabalho e experiência do perito enquanto falava. Quando viu de certa forma Gross fazer referência à sua carreira certamente extensa, os músculos do homem relaxaram visivelmente. Talvez porque ele não tenha percebido que quando parou de falar, Gross tinha na verdade enrolado, e o chamado de incompetente da mesma forma. E Gross continuou a falar.
– E é bastante claro que o senhor gostaria e deveria estar em outro lugar agora. Afinal, é aniversário do seu filho, e eu tenho certeza que meu amigo Carlos só o chamou aqui porque queria uma opinião urgente de um perito experiente, e só depois a minha.
O homem arregalou os olhos e abriu a boca de uma maneira cômica. E confesso que eu também não tinha ideia de como Gross sabia aquilo tudo. No momento, pensei que Teixeira havia lhe dado tais informações. Mas logo entenderia que Gross não precisava ser externamente informado, desde que ele tivesse dois olhos plenamente operantes.
– Como sabe que é aniversário do meu filho? - perguntou o perito ainda incrédulo.
Agora Gross parecia estar um pouco mais condescendente, pois deve ter percebido os olhos do homem lacrimejarem.
– Ah, isso? -  começou ele -  É simples. Quando cheguei, passei primeiro na frente da casa. Notei o carro do delegado, e apenas mais outro estacionado logo atrás. Olhando de relance para dentro deste último, pude ver um jaleco branco sobre o banco do carona. E também algo que me pareceu ser a ponta de uma luva de borracha saindo por uma fresta no porta luvas, e protetores de calçados como estes que estamos usando, dentro de uma caixa entreaberta no assoalho.
Além disso, vi no banco de trás uma caixa retangular embrulhada para presente com um cartão. Neste eu só consegui ler a data de hoje e: "Feliz aniversário garotão". Havia mais alguma coisa, mas não pude registrar. Ao entrar aqui e notar que só havia o senhor, Carlos, e o policial à paisana na porta da sala, concluí que o policial veio até aqui junto com Carlos em seu carro. E que, portanto, o carro parado logo atrás do de meu amigo delegado, só poderia ser o seu.
O homem estava estupefato. Mas não só isso, pois enquanto Gross explicava seu raciocínio, um sorriso começou a alargar-se no rosto do homem. E quando Gross terminou sua explanação, qual não foi minha surpresa ao perceber que eu também estava sorrindo? Aliás, quem não o faria?  Era tão inimaginável quanto simples. Nunca tinha visto alguém com tal poder de observação. E além desse dom, Gross ainda demonstrou uma maestria inacreditável ao ligar coisas que ele tinha visto lá fora, com a pessoa aqui diante de nós.
– Fantástico! -  exclamava o perito -  Mas devo apenas observar que poderia ter se enganado, pois o policial poderia ter vindo no meu carro. -  disse ele num tom jocoso. Gross sorriu benevolente.
– Na verdade não. -  disse Gross enquanto Teixeira ria sozinho num canto.
– O policial, que acredito deva ser um novato, – continuava Gross espantosamente paciente –  na ânsia de entrar na casa, deixou sua insígnia no porta copos do carro de Carlos. Arrisco dizer que o delegado saiu primeiro do carro, e conhecendo-o como conheço, deve ter dito ao rapaz para segui-lo depressa. Este por sua vez, no último momento deve ter notado que se esqueceu do distintivo preso em seu cinto, e já que ninguém deveria perceber a presença policial aqui, o tirou, colocando-o no lugar que lhe pareceu mais viável. Se não foi assim, de qualquer forma seu distintivo está lá. E antes que me pergunte como sei que o distintivo não é o do próprio delegado, digo que Carlos não se separa dele talvez nem para dormir. E eu me espantaria se ele não estiver agora sobre seu peito por baixo da camisa.
O delegado Teixeira sorriu alegre, enquanto afagava o volume do distintivo na camisa. Se ele não tivesse feito isso, eu mesma não o teria notado. Pois Teixeira estava com uma espessa jaqueta, cujo zíper subia até o meio. O perito gargalhou.
– Dou a mão à palmatória senhor Gross. Seu poder de observação é incrível. Acho que tirei conclusões precipitadas sobre o senhor e peço desculpas.
– Oque é isso? Não precisa se desculpar. Acontece o tempo todo, e não me sinto ofendido de maneira nenhuma.
– Bom, Dr. Francisco, – disse o delegado Teixeira – como Gross explicou, eu queria a opinião de um profissional antes de tudo, mas agora você já pode ir. Afinal não queremos que seu filho fique decepcionado por seu pai perder mais um aniversário por culpa do trabalho.
– Obrigado senhor. -  disse Francisco feliz da vida. Quando o perito ia saindo do quarto, Gross ainda disse:
  Ah, acho que o garoto vai adorar o notebook.
E antes que o perito pudesse perguntar algo após virar-se visivelmente atordoado, Gross completou:
– Mas se eu fosse você, retiraria a nota fiscal do quebra-sol. Pois se ele encontra-la antes da hora, vai estragar a surpresa.
Francisco riu-se a valer sacudindo a cabeça enquanto deixava o local. Imediatamente Gross trancou seu semblante.
– Vamos trabalhar. – disse. – Onde está o marido?
– No outro quarto. – informou Teixeira.
– Empregados?
– Uma doméstica que mora na casa dos fundos. Ela encontrou o corpo. Está dormindo, pois lhe dei um calmante. Ela não parava de chorar.
– Muito bem. – disse Gross voltando a sua pose com a mão na nuca. – Agora que estou familiarizado com a cena, me conte novamente os fatos, cronologicamente, da maneira que os recebeu.
Teixeira abriu um bloco de notas que retirou do bolso da jaqueta, pigarreou e começou:
– Recebi ontem às quatro da manhã um telefonema do Promotor Eduardo de Souza Andrade, que se encontrava no Rio de Janeiro. Ele estava muito aflito e eu mal conseguia lhe entender. Após acalma-lo o melhor que pude, ele me disse que sua esposa estava morta. A empregada, que mora nos dois cômodos atrás, o ligou às três e meia e lhe contou a tragédia. Entre choros e soluços disse ter acordado com o som de disparos. Olhou no relógio, e eram três e quinze da manhã. Disse a ele que não teve coragem de sair para ver o que era, mas após ouvir o portão dos fundos bater com força, temeu pela patroa, e armando-se de um pedaço de madeira que pegou no quintal, entrou na casa pela porta da cozinha. Segundo ela, as luzes estavam todas acesas. Ela foi andando e chamando pela patroa, mas ninguém respondia. E então ao chegar à porta do banheiro teve de se encostar à parede do corredor, pois nunca havia visto tanto sangue. Segundo oque ela disse ao patrão, quase desmaiara nesse momento. Depois, seguiu até este quarto, e se deparou com esta cena. Disse ao patrão que nem se lembrava de ter chegado à sala e de ter discado para ele. Então o Dr. Eduardo a disse para não fazer, nem tocar em nada. Ordenou que voltasse à sua casa, pois ligaria ele mesmo para a polícia daqui, e que em breve chegaríamos. Ela disse que faria como ele mandou. Então ele me ligou, contando o supracitado e me implorando que tudo ficasse no mais absoluto sigilo. Pediu que eu viesse até à casa, e examinasse a cena como de praxe. E que se fosse imprescindível trazer alguém, que fossem pessoas em quem confio, porém, ressaltou que quanto menos pessoas soubessem do ocorrido, melhor. Explicou-me que poderia haver complicações políticas se o caso fosse divulgado sem o devido cuidado, e disse que assim que chegasse, eu entenderia tudo. Completou dizendo que enquanto conversávamos, estava fazendo sua mala, e logo estaria num voo fretado para cá. Teixeira parou para tomar fôlego. Gross continuava com uma mão na nuca e outra no bolso e de olhos fechados. Eu ouvia atentamente, olhando diretamente para o delegado, tentando poupar meus olhos daquela visão horrenda.
– Eu cheguei aqui por volta das sete da manhã, trazendo o policial Alex comigo. Fui recebido pela empregada, que se encontrava em frangalhos. O rosto estava muito inchado de tanto chorar. Ela tremia muito, e seu relato foi quase uma cópia fidedigna do que o promotor me contou. Mas antes de tomar seu depoimento eu vim ver o corpo, tão logo ela me indicou onde estava. Voltei e lhe interroguei superficialmente na cozinha. Após ver esse detalhe…  – ele apontou para algo no corpo que eu não conseguia ver.
–… E juntando com as recomendações do promotor, que confesso não me agradaram, eu logo pensei em você. Não sei se você sabe Gross, mas nos últimos meses tivemos sérios problemas com grampos clandestinos. Eu me refiro à polícia. Alguns policiais chegaram a ser chantageados por causa de telefonemas gravados. Imagine só! Policiais tendo seus telefones particulares, residenciais e móveis, grampeados. Devido àquelas recomendações do Dr. Eduardo, decidi ir lhe pedir ajuda em pessoa. Mesmo porque, bem sei o quanto você detesta viajar, então imaginei que falando com você pessoalmente, seria mais fácil convencê-lo a vir. Deixei Alex de guarda aqui por volta das oito horas, e me dirigi ao centro, decidido a ir à São Paulo lhe procurar.  Alex me ligou às nove e meia, informando que o Dr. Eduardo havia chegado à casa, e após ver o corpo da esposa, trancou-se no outro quarto, garantindo que não sairia de lá até que eu retornasse. Peguei o voo para São Paulo ao meio dia. Você disse que estaria aqui provavelmente hoje pela manhã. Eu estava aqui na casa de novo à uma e meia da manhã de hoje. Conversei rapidamente com Dr. Eduardo, que se encontrava muito abatido e nada acrescentou ao que já tinha dito. Porém ao lhe falar sobre você, ele disse já ter escutado algo a seu respeito, e que, portanto era melhor esperar que você chegasse para ele explicar tudo de uma só vez. Então depois de algumas providências, que levaram todo o resto da madrugada, eu pedi para o Dr. Francisco vir até aqui para ter as primeiras impressões do crime. Ele é bem experiente, mas quando eu vi as coisas estranhas por aqui, – ele abriu os braços indicando o cômodo – eu sabia que precisaria de você de qualquer forma. – novamente ele tomou um folego.
– Agora meu amigo, o palco é todo seu. – completou o delegado com uma cômica reverência.
– Vejo que não perdeu seu humor desde nosso último encontro. – disse Gross sorrindo enquanto sacudia a cabeça para a graça do amigo.
 – Então vamos lá. Primeiro oque vem primeiro. Os vizinhos não ouviram os disparos?
– Bom, como você deve ter notado, o vizinho da direita, olhando da rua, está há pelo menos cem metros daqui, separado por terrenos vazios. À esquerda ainda não há vizinhos, só a construção adjacente, depois dela já temos uma esquina. É um bairro novo, com promessa de se tornar grande e desenvolvido, os terrenos são bem caros. Não é de se admirar que sejam ainda poucas casas. Sendo assim, o vizinho mais próximo é o da frente, este também sem vizinhos laterais, é o único que poderia ter ouvido os disparos.
– E porque não ouviu? – perguntou Gross.
– Porque estava acontecendo uma festa ontem por lá. O filho do casal passou no vestibular, e decidiram comemorar. A festa se estendeu das onze da noite anterior ao crime, às cinco e meia da manhã do dia fatídico.
– Certo. – disse Gross dando uma sacudida na cabeça, como se tivesse a intenção de fazer toda a súbita informação ajeitar-se em seu cérebro. Eu confesso que ri internamente dessa cena.
– Vamos até o portão dos fundos. Acho que você já viu que foi por lá que nosso visitante entrou, não?
– Sim. A empregada disse que antes dos fatos o portão estava totalmente intacto.
– Certo. Vamos segui-lo então.
Voltamos pelo caminho que viemos. Saímos pela porta da sala e ficamos bem próximos ao muro de pedra enquanto nos dirigíamos ao portão dos fundos. Era uma faixa de grama de uns dois metros entre a casa e o muro. Gross vez ou outra olhava algo no chão, mas sem diminuir o ritmo de seus passos. E depois de uma virada de noventa graus no muro de pedra, alcançamos o portão. Gross o abriu todo e nos colocamos do lado de fora.
– Muito bem, – começou ele – nosso MF entrou por aqui.
– MF? – cochichei em pergunta para o delegado que estava ao meu lado.
– Malfeitor. – respondeu ele – É como Gross chama os autores dos crimes antes de termos condições de dar nome aos bois, se é que me entende. 
Ah, sim. – disse eu sorrindo.
–… então ele virou para a direita, –  continuava Gross – e veio até aqui. Obviamente sabia que a empregada morava na propriedade. Ficou em pé aqui, de frente à janela de seu quarto perscrutando seu sono profundo. Tão logo se sentiu seguro voltou a caminhar. Circundou a casa da doméstica, e seguiu por aqui.
Agora nós pegávamos o lado direito da casa principal, onde logo à frente se podia ver uma porta de alumínio, cuja qual deduzi ser a porta da cozinha. Chegando até ela, Gross examinou a fechadura.
– Não parece ter sido forçada, eu mesmo verifiquei. – disse Teixeira.
– E não foi mesmo. – retrucou Gross – No entanto… Bom, é sugestivo, se não houver mais nada.
Eu não entendi oque ele quis dizer. Franzia meu cenho como se isso fosse me dar uma luz que me fizesse alcançar oque Gross estava pensando. Foi quando o delegado me deu uma leve cotovelada.
– Você começou há pouco com ele não é?
– Uhum. – resmunguei balançando a cabeça.
– Pois dou uma dica para você. – disse ele num tom sussurrante de confissão – Não tente acompanhar o raciocínio dele, pois, ou você enlouquece, ou pede demissão. Gross tem um jeito muito particular de ver as coisas, e praticamente nada do que faz é ortodoxo.
– Já reparei nisso. – disse eu no mesmo tom.
O delegado piscou para mim e continuamos atrás de Gross, que agora estava na frente da casa. Ele olhou, procurou, algumas vezes foi e voltou atrás. Então seguiu em frente circulando a casa em direção aos fundos novamente. Ao passar pela porta da sala olhou o policial Alex, que estava afastado um pouco do batente. Embora seu olhar fosse atento, era nítido que estava cansado da vigilância.
Gross se dirigiu para a porta da sala, e entendemos que ou ele sabia como o assassino entrou, ou tentaria descobrir lá dentro. No entanto, ele parou bem diante do policial e disse naquele tom que o delegado havia usado comigo minutos atrás.
– Se quer mesmo seguir esta carreira, saiba que quando estiver de vigia, não poderá abandonar seu posto para esticar as pernas e se alimentar, até que alguém possa rendê-lo.
O policial abriu bem os olhos, pigarreou, e se não me engano pude ver um princípio de suor em sua testa. Gross não havia falado tão baixo, e bem ou mal, todos nós ouvimos. O pobre Alex desesperou-se, e tentou se explicar.
– Doutor… desculpe-me. Eu não tive a intenção de sair do meu posto. Mas a tragédia já havia acontecido, e eu apenas estava com as pernas doendo e com fome. – seu olhar ia de Gross para Teixeira – E eu não abandonei a propriedade, eu fiz um sanduíche com oque encontrei na geladeira e fui para o quintal comer, não queria contaminar a cena. Perdoem-me se fiz algo errado.
Seu olhar era de súplica, e Gross se tornou mais uma vez paterno.
– Vamos lá, vamos lá, acalme-se. – falou batendo de leve no ombro do rapaz – Eu não disse que estragou nada, eu só lhe dei uma dica. Não estragou, mas poderia ter estragado. Suponha que o MF tenha esquecido algo que o denunciaria. Com certeza ele poderia voltar para recuperar, então entraria pelo mesmo lugar que entrou quando veio cometer o crime, pois você não estaria à vista.
As sobrancelhas de Teixeira se ergueram. Eu entendi. Gross já sabia como o homem entrou na casa. Isso estava me deixando cada vez mais excitada, e eu não via a hora de ele revelar tudo oque sabia. Mas para começar, ele bem que podia dizer como sabia que o policial saiu de dentro da casa, andou e comeu. Não havia pegadas. A casa estava ilhada por um bem cuidado gramado, que ia até o muro de pedra. Fiquei olhando em volta, procurando ver oque Gross viu, mas tão logo ele acalmou o jovem policial, ele fez-nos segui-lo casa adentro. Ele foi até a porta da cozinha e a abriu. Parou no batente, enquanto nós permanecíamos no corredor olhado para ele.
Fiquei ali, atenta a cada movimento dele. Para onde ele olhasse, meu olhar seguia o seu. Muito me estimulava a ideia de que eu pudesse entender como ele trabalhava, como funcionava seu raciocínio. Ele certamente parecia um robô no momento em que se colocava a investigar uma cena de crime. Parecia entrar em transe. Não que se esquecesse de quem estava em volta, mas ali, sozinho em seu elemento, ele agia de forma sistemática, fria, impessoal. Nenhuma ruga que denotasse o menor sentimento se via em sua expressão. Aliás, que expressão? Não havia nenhuma. Sua face era neste momento, uma perfeita escultura de pedra. Seus olhos não brilhavam, seus lábios não tremiam,  e nem mesmo suas sobrancelhas se elevavam. Ele não dava nenhuma pista que fosse, sobre como estava se saindo quanto à sua varredura da cena.
Gross passou um dedo nas dobradiças da porta da cozinha, e esfregou o indicador e polegar. Cheirou, virou a cabeça para nós com o olhar perturbadoramente vazio, e andou pelo cômodo olhando aqui e ali. Depois disso veio em nossa direção, e abrimos caminho para ele. Olhou as paredes do corredor atentamente, voltou à sala e repetiu o exame nas dobradiças da porta desta. Agachou-se e examinou a fechadura, e depois abriu e fechou a porta. Primeiro de maneira natural, depois, bem devagar. Terminado isto, seguiu pelo corredor e entrou no banheiro.
Era uma confusão. Agora, já sabendo oque eu veria quando olhasse lá dentro, eu pude notar mais coisas. Frascos de shampoo e condicionador, secador, pentes e escovas de cabelo; tudo isso estava pelo chão em meio ao sangue. O espelho sobre a pequena pia estava quebrado, e os cacos espalhados por toda parte. Uma toalha de banho jazia à porta do box, parcialmente manchada pelo líquido vermelho. Manchas de sangue se sustentavam nas paredes, e algumas delas, claramente se podia ver terem sido produzidas por uma mão ensanguentada, que fatalmente por ali se apoiou. Gross ia de um lado ao outro, e como no quintal, às vezes voltava num local já visto.
O líquido venoso estava todo pisoteado antes mesmo de Gross adentrar o lugar. Ele o havia olhado atentamente quando ainda estava sob o batente da porta, e agora não se importava em pisá-lo.
Terminado seu exame, voltou ao corredor, logo depois que Teixeira lhe deu um novo par de protetores para os pés. Então se dirigiu ao quarto onde estava o corpo mais uma vez. Agora examinava as paredes, nas quais eu não via nenhuma marca. No entanto, ele se demorou nelas. Examinou a cama com a mesma meticulosidade, foi até o armário com as armas, abriu ambos os criados-mudos, e finalmente parou diante do corpo.
Agora descreverei exatamente oque vi naquele momento. Pois minha primeira impressão com certeza seria incompleta, devido meu choque. A mulher estava sentada numa das banquetas que ladeavam a pequena mesa de madeira. Vendo-se da porta ela encontrava-se de costas. Vestia um roupão rosa bem felpudo, que estava desamarrado e aberto totalmente. Não estava com nenhuma roupa, nem mesmo íntima. Seus cabelos dourados e desgrenhados, precipitavam-se em cachos sinuosos para o chão. Olhando-a de lado, podia-se ver seu corpo quase todo à mostra. Os seios eram fartos, mas não eram caídos como pareciam que deveriam ser, e o único defeito ali era um orifício pequeno e redondo, localizado quase  abaixo do seio esquerdo. Tinha uma bela cintura e seu quadril era bem proporcional. Tinha coxas longas e pés delicados. Na parte externa da coxa esquerda mais um orifício, exatamente igual ao outro. As pernas me pareceram, como estavam dispostas, antinaturais, pois se encontravam cruzadas perfeitamente. Sua pele era bem branca, e continha umas poucas sardas no colo. Seu rosto era muito belo, linhas suaves, curvas delicadas e maçãs um pouco proeminentes.  Havia um ferimento profundo em sua testa, e o sangue teve seu caminho dividido por aquele nariz empinado. Seus olhos eram azuis, e encontravam-se semicerrados, oque lhe conferia uma imagem lúgubre. Sua boca entreaberta, bem como suas bochechas afundadas, deixava transparecer que morrera com profunda dor, como seus dentes cerrados corroboravam. Seu braço direito estava caído sobre a mesinha, e sua cabeça apoiava-se nele horizontalmente. O esquerdo pendia ao longo do corpo com a mão crispada.  
Ainda sobre a mesa de madeira, encontrava-se um tabuleiro de xadrez. As peças estavam espalhadas por sobre a mesa e também pelo chão. Meu amigo deu uma boa olhada nelas e as recolheu uma a uma, colocando-as em pequenos sacos plásticos. Por último, ele abriu a mão direita da mulher, e de lá retirou mais uma peça de xadrez. Com uma atitude teatral, ele ergueu a peça acima da cabeça como um troféu. Um sorriso ensaiou-se em seu rosto, e ele com todo cuidado guardou a rainha branca num saquinho à parte.
Gross já estava saindo do quarto quando algo lhe chamou à atenção. Voltou por um momento, enfiou a mão no bolso de trás da calça e sacou um pequeno estojo de plástico. Deste, retirou uma minúscula pinça, e recolheu algo no batente da porta do quarto. Então saiu. Virou-se à direita, para o segundo quarto. Examinou também o batente em toda a sua extensão, bem como a porta.
– Podem me esperar na sala? – disse ele.
Virei minha cabeça enquanto me dirigia para um sofá, a tempo de ver Gross agachando-se no corredor e andando lentamente de cócoras. Este corredor era acarpetado, e eu não conseguia imaginar oque ele procurava ali agora, já que tudo tinha sido incansavelmente pisoteado.  Ele, no entanto o fez demoradamente, pois só se reuniu a nós cinco minutos depois.
– Pronto! – declarou ele – Podemos passar às testemunhas.

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