quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

continuando...

                             Capítulo 2

                                               Em comum


Enquanto andávamos, tentei saber mais sobre o homem que me salvara de uma situação complicada.
– Eu sei que pode parecer impertinente, mas é que sou fã de artes marciais, e oque você fez há pouco, me deixou maravilhada.
Ele sorriu.
– Não é nada demais. – falou ele – Eu sou um eterno aprendiz de Muay Tai. E enquanto pratico, aproveito para desenvolver algumas técnicas que se encaixem melhor ao meu perfil.
– Fascinante! – disse eu com os olhos brilhando. – E você trabalha Sr. Willian?
–  Ah, claro! Todos têm que trabalhar para sobreviver não é? – disse ele sorrindo para mim.
Alguma coisa no seu jeito de falar e em seu sorriso me impediu de perguntar sua ocupação.
– É claro. – respondi.
– Mas e você? Acho que a pequena aventura de alguns minutos atrás não deve render nenhuma grande manchete, não é?
Não, infelizmente acho que… – fiquei emudecida ao me lembrar de que eu não havia comentado nada referente ao meu trabalho. Olhei para ele totalmente perplexa enquanto estacava na calçada. Ele que continuou em frente, parou e virou a cadeira de rodas em minha direção.
– Ah, desculpe-me. – disse ele rindo. – Você não disse que era repórter, eu sei.
– Exato! – foi tudo que saiu da minha boca, enquanto meus olhos ainda se encontravam escancarados.
– Se acalme. –tentou ele me tranquilizar. – Acontece que eu sou uma pessoa que assimila as coisas muito rápido, pelo que me dizem.
– Como assim? – perguntei aturdida.
– Bom, eu não pude não perceber quando você e seus amigos chegaram de carro ao local, já que eu estava na esquina há poucos metros. Oque me possibilitou ouvir a breve discussão dentro do carro, que se referia à câmera do fotógrafo. Você estava do lado de fora, atenta aos movimentos dos rapazes que se encontravam à entrada daquela casa de massagem.
– Assim que vocês chegaram, eu vinha pela calçada, então passei pelo carro antes que este saísse atrás da viatura. Tive tempo de ver o crachá de seu amigo Henrique. "O curioso". É para este jornal que você trabalha não é?
Sacudi a cabeça em resposta.
– Pois então, como eu duvidaria que você estivesse atrás de uma matéria? Eu bem conheço os repórteres desse  jornal. São como abutres que se tornam excepcionalmente ágeis, ao menor cheiro de podridão. Sem ofensas, por favor.
Estaria sendo hipócrita se me ofendesse. Afinal, eu sabia muito bem que o jornal era sensacionalista. E que repórteres e fotógrafos chegavam a passar dias e noites de tocaia, apenas esperando uma oportunidade de manchar o nome de alguém que se encontrava num dia ruim.
– Ofensa nenhuma. – respondi. – Confesso que não é oque eu quero exatamente, mas apenas um degrau. – justifiquei-me.
– Entendo.
– O senhor me assustou! Achei que era vidente ou algo do tipo. - disse eu sorrindo.
Ele gargalhou com gosto.
– Já me disseram isso mais de uma vez. E acho mesmo que conseguiria enganar muita gente se enveredasse por esse lado. Mas existem ocupações mais honrosas para quem sabe observar oque deve, sem que seja a de tomar dinheiro de incautos.
Novamente minha curiosidade me assaltava. Sentia como se algo dentro de mim empurrasse a pergunta garganta acima.
– Não consigo pensar em alguma assim, de repente. – arrisquei.
– Sua curiosidade te maltrata não é Alessandra? – disse ele sorrindo.
Eu apenas levantei as sobrancelhas em sinal de não saber do que ele estava falando.
– Ora, vamos. – ele disse – Você é uma pessoa ansiosa, inteligente, sonhadora, batalhadora, destemida, um tanto insegura… Como poderia não ser dominada por uma curiosidade tão grande, que você sente que na maioria das vezes não pode com ela?
Ele falou de uma forma muito rápida. Como quem lê uma lista para alguém que já conhece a maioria dos itens.
– Senhor Willian! – exclamei parando novamente de andar.
– Oque foi? – perguntou ele virando-se novamente.
– O quê foi? O senhor acaba de me descrever quase por completo. Já percebi que é um bom observador, mas isto… É demais pra mim.
Ficamos nos olhando por uns segundos.
–  Você tem que me ensinar a fazer isso. – disse eu com o semblante sério. Mas ele entendeu que era uma falsa raiva. Rimos muito por alguns segundos enquanto eu novamente me juntava a ele.
– Não sei se é algo fácil de aprender, mas posso te dar umas dicas.
– Logo depois de me explicar como descobriu tanto sobre mim, não é mesmo? – indaguei num tom de súplica.
Ele sorriu alegre.
– Pode ser. Mas tem que ficar para outro dia. Como eu disse, tenho assuntos urgentes, e chegamos à minha bat-caverna.
Desviei o olhar rindo da piada e vi então onde ele morava. Não era uma casa, e sim um prédio. De tão velho e mal conservado, me pareceu ter mais de cem anos.
– Vai mesmo me maltratar assim senhor Willian?
– O primeiro passo é controlar sua ansiedade, e também sua curiosidade. Se puder fazer isso, ai poderemos progredir. E a propósito, pare com o "senhor Willian". Da minha parte já lhe considero uma amiga, portanto, é apenas Willian, tudo bem?
– Certo. – respondi
– E para provar que já lhe considero uma amiga, vou satisfazer uma de suas curiosidades agora mesmo.
Uma energia me percorreu o corpo como uma corrente elétrica, e entusiasmada perguntei:
– Qual?
– Você há pouco não se aguentava de vontade de me perguntar no que eu trabalho. Pois bem. Eu sou um decodificador de situações. E sou solicitado quando estas situações apresentam detalhes, que maculam a reputação melindrosa das pessoas que as tentam entender.
Fiquei ali em pé olhando para ele com uma cara engraçada.
– Me parece que o senh… você… gosta de falar por entrelinhas. – disse eu sincera. – Mas acho que entendi. Você é um detetive, não é isso?
– Por favor! – disse ele levantando a mão com uma expressão de desagrado no rosto. – Eu não gosto de rótulos. E esse termo já foi tão amplamente usado, que se tornou uma espécie de vírgula para mim. Além disso, "detetive" é um substantivo muito rudimentar para denominar oque eu faço.
Nesse momento eu pensei brevemente que Gross era um tanto presunçoso. Afinal, para mim, detetive era até mesmo um adjetivo dos mais honrosos para quem o detivesse. No entanto, não dei alarde da minha impressão.
– Bom, mas se é assim, com certeza você é um… – procurei a palavra mentalmente – consultor. Não trabalha para polícia oficialmente, não é assim?
Ele me olhou com um olhar curioso. Parecia surpreso com minha dedução.
– Como chegou a isso? – perguntou.
– Ué! Da maneira como descreveu sua ocupação, e como se referiu aos "que tem a melindrosa reputação maculada", só pude pensar que se referia a polícia.
Agora seus olhos brilhavam de excitação.
– Excelente dedução! Maravilhosa! – disse ele com sinceridade. – Começo a ver que você pode ter um futuro nesse campo.
Não pude deixar de sentir pelo calor nas bochechas, que estava corada. Contudo, tentei minimizar meu feito, enquanto por dentro explodia em alegria.
– Estava bastante óbvio Willian.
– Justamente. É oque vivo dizendo aos que me perguntam como cheguei a esse ou aquele resultado, que para eles até aquele momento, era insolúvel.
– Ah Willian, – protestei – mas não queira comparar oque acabo de deduzir com oque você fez há pouco. Descrever a personalidade de uma pessoa como fez, está a anos-luz da bobagenzinha que eu fiz.
– Talvez, mas você leva jeito menina. – falou brincalhão – se tiver interesse no ramo, pode se dar muito bem.
– Obrigada!
– Bom, agora preciso mesmo entrar. Assuntos urgentes me esperam.
– Uma grande conspiração a ser revelada, talvez? – brinquei.
Ele me olhou de repente e muito sério com seus olhos cinza. Depois, apoiou as mãos nos braços da cadeira e se inclinou para frente olhando para todos os lados, verificando se ninguém estava por perto. Novamente pôs os olhos em mim e estudou meu rosto rapidamente. Nesse momento meu sorriso de zombaria já se desfizera, e uma sensação de perigo me aflorava no estômago me causando desconforto.  
E então, como uma criança que viu uma careta qualquer dos pais, ele desatou a rir histericamente.
– Desculpe. – disse passando a mão na testa – eu não resisti à tentação.
– Bobo! – falei. Pra logo em seguida rir também. – Tudo bem então. Ei, por que não fica com meu cartão? Assim, quando estiver disponível para conversarmos mais você me liga. E não pense que vou me esquecer. Você me deve umas aulas de dedução lógica. –  declarei.
– Tudo bem. Talvez eu não demore a ligar, ultimamente não tenho tido muitos compromissos. É oque acontece quando a ciência avança, e em contra partida os bandidos fogem das salas de aulas cada vez mais jovens. Acaba-se tendo menos crimes bem arquitetados, oque por sua vez, resulta em menos trabalho para pessoas como eu.
– Uma pena – lamentei. Para depois perceber minha imprudência. – Não que eu esteja desejando que mais e mais crimes espetaculares aconteçam. – me apressei em dizer – Quer dizer, se não acontecem você fica sem poder agir, mas se acontecem…
– Calma Alessandra. – disse ele rindo – Eu entendi oque quis dizer.
Sorri sem graça.
– Bem, boa noite Willian, e não deixe de me ligar.
– Não se preocupe, eu com certeza ligarei. E como você vai para casa? – perguntou ele.
– Ah, não se preocupe, vou pegar um táxi.
– Tudo bem então. Se cuide. E tente não andar desacompanhada por becos mal frequentados à uma hora dessas.
Sorri para ele e juntei as mãos fechando os olhos, num gesto de promessa.
– Tchau. – disse eu enquanto me virava para seguir meu caminho.
– Tchau.
Comecei caminhar e de repente me veio aquela sensação inquietante de que eu havia visto dois degraus antes do portão de entrada de onde Gross morava. Não parecia haver um porteiro ou alguém para ajuda-lo a entrar. E pelo que pude perceber, o portão da garagem dava direto para o subsolo. Eu havia dado uns vinte passos à frente após ter me virado para rua. Não aguentando a ideia de que ele certamente precisaria de ajuda para entrar, e talvez por querer muito fazer algo para amenizar minha dívida pessoal com ele, eu me virei.
Minha cabeça ia de um lado para o outro esquadrinhando a rua a minha frente. O homem havia desaparecido! Mas como era possível? Não tinha passado nem meio minuto desde que virei às costas para ele. Voltei apressadamente até à frente de seu prédio e olhei em volta. Mas ele simplesmente evaporara. Fiquei muito intrigada com isso. Mas como assim que o deixei comecei a pensar na desculpa que inventaria ao meu editor por ter sumido o resto da noite, resolvi que era possível alguém do prédio ter-lhe ajudado a entrar. Peguei um táxi na esquina e fui para casa. Eu merecia sem dúvida um bom banho e um belo e enorme copo de chocolate quente depois de tanta agitação. Quando finalmente me deitei na cama, a cena de Gross nocauteando aqueles homens não saía da minha cabeça. Foi realmente inacreditável, e comecei a pensar se isso não daria uma boa matéria de alguma forma. E a partir daí comecei a imaginar Gross como uma espécie de vigilante noturno, que em meio à penumbra da cidade adormecida, percorre as ruas em sua veloz cadeira de rodas, trazendo justiça aos que merecem. Podia até vê-lo com uma máscara no rosto, sua cadeira de rodas motorizada e escapamentos que soltavam fogo e fumaça pelo cominho. Mas neste momento creio que já estava em sono profundo, pois só me lembrei destas últimas cenas quando tomava café da manhã no dia seguinte.
Meu dia começou como era esperado. Rodolfo estava uma fera. Não particularmente comigo, mas sobrou para todos os envolvidos. Uma vez que Henrique e Antônio, não conseguiram seguir a viatura por muito tempo. Embora Rodolfo não tivesse brigado comigo diretamente, ficou muito bravo por não ter conseguido oque queria. Nem sequer deu atenção à minha explicação, tampouco ao fato de que eu quase fora violentada. Senti-me totalmente deslocada e com muita raiva pela sua indelicadeza. Porém, usei a raiva que senti naquele momento, para me motivar. Eu iria a qualquer custo conseguir uma matéria hoje. – Uma matéria não! – me censurei – Eu vou conseguir "A primeira página". O problema era: Como? Oque eu poderia explorar de tal forma a ser merecedor da primeira página do jornal?
Gross não me saía do pensamento e isso me confundia e distraía. Talvez se eu o encontrasse de novo eu pudesse fazer isso parar. Ou quem sabe ele poderia saber de alguma coisa interessante que me rendesse alguma matéria. Isso me pareceu pouco provável, já que sua opinião sobre o jornal era péssima, mas eu estava sem inspiração alguma. Resolvi então ir visita-lo. No começo isso me pareceu um pouco inconveniente, mas também era verdade que fiquei preocupada após ele se pulverizar na noite passada. Teria naturalmente que levar algo como agradecimento pela ajuda na noite passada; mas o quê? Eu não sabia nada sobre ele; se bebia, se gostava de música, sua comida preferida, absolutamente nada.
Quando voltei do almoço, pensei que eu simplesmente poderia convidá-lo para jantar, talvez em casa. Eu não era uma excelente cozinheira, mas me virava bem. Era uma boa ideia.
Às cinco horas, como nada mais era urgente, deixei o jornal e fui fazer umas compras para o jantar. Caso ele não aparecesse, ao menos eu estaria dando uma mão para o Marcelo com o pouco que podia. Claro que corria o risco de Gross não estar em casa, afinal, talvez ele tivesse saído para resolver alguma pendência, já que disse ter assuntos a resolver. Mas valia a pena arriscar. Se ele não estivesse lá, esperaria seu telefonema então.         Mas antes eu precisava de um caixa eletrônico. Estava com pouco dinheiro, e dependendo do gosto do meu convidado, talvez eu precisasse estar mais bem preparada.
Logo na esquina da rua do jornal, havia uma filial do meu banco. Dirigia-me ao caixa procurando meu cartão magnético em minha bolsa, e pensando como foi bom conseguir esse emprego no jornal, pois o pouco que consegui economizar na lanchonete, já estava no fim. Quando avancei para a máquina meus olhos percorreram a rua aleatoriamente.
Eram tantas pessoas que eu ficava imaginando todos como formigas numa cúpula de vidro. Às vezes esse vai e vem desenfreado de pessoas em São Paulo, me sufocava ao ponto de eu querer sumir pra uma cidade mais tranquila. Oque naturalmente era um contrassenso, já que eu havia acabado de fugir de uma. Esse pensamento me divertiu.
Havia três pessoas na minha frente formando uma pequena fila. A senhora que usava o caixa quando cheguei, estava com certeza tendo dificuldades. Entretanto, ninguém parecia se importar em esperar, e tampouco em ajuda-la. Os primeiros da fila eram dois homens que estavam conversando algo aparentemente sério. Na minha frente, uma mulher retocava a maquiagem despreocupadamente. Resolvi ajudar à senhora, já que esperar, não era algo que me agradasse fazer. Saí da fila e me encaminhei para o caixa. Mas ao me aproximar dos homens que estavam na ponta da fila, eu tive um choque. Ali, conversando com outro homem, estava Willian Gross. Eu deveria ter ficado feliz, já que não teria que ir até a casa dele. Embora ele parecesse ocupado, talvez não fosse nada sério, e ele aceitasse meu convite. Entretanto leitor, quando eu disse que levei um choque ao vê-lo, foi pelo simples fato de que Gross encontrava-se certamente em pé, sem nenhum apetrecho que isso lhe permitisse e se apoiando sem dificuldade alguma em ambas as pernas.
O outro homem estava de costas para mim. Gross conversando com ele, estava de frente. Eu estaquei de perplexidade quando o vi. Isso deve ter-lhe chamado à atenção, pois ele imediatamente dirigiu o olhar para mim. Sem parar de falar com o outro homem, o olhar de Gross me atingiu quando me percebeu, mas não se alterou. Parecia até que ele não havia me reconhecido. Voltou a olhar para seu interlocutor, e continuou a falar. Mas no momento em que o homem abaixou a cabeça para jogar seu terminado cigarro no chão, ele novamente me olhou. Sua testa franziu-se, as sobrancelhas juntaram-se, sendo que a esquerda se elevou. Eu não entendia oque estava acontecendo, mas como sempre fui prática, consegui  reprimir meus instintos, e simplesmente retomar minha caminhada para ajudar a pobre senhora que já se desesperava com o caixa eletrônico. Passei a meio metro de Gross sem olha-lo, e fui fazer minha boa ação do dia.
Quando terminou de fazer oque queria, a velhinha me agradeceu efusivamente. Voltei para o meu lugar na fila ainda sem olhar para Gross, e lá fiquei imóvel até que o homem que o acompanhava fizesse um saque, e os dois saíssem andando tranquilamente. Depois disso, abri mão de usar o caixa e fui sorrateiramente seguindo os dois homens pela rua. Eles entraram em uma lanchonete dois quarteirões depois. Fizeram pedidos e sentaram-se em uma mesa próxima à calçada. Eu fiquei atocaiada na esquina, a espera de uma chance de interpelar Gross. Eles conversaram por uns dez minutos, e o outro homem, um sujeito alto e de rosto amigável, parecia muito preocupado. Gross dizia alguma coisa com aquele seu ar despreocupado. Entretanto, o homem falava veementemente, como se Gross não entendesse a gravidade do fato.
Logo que o homem se levantou e apertou a mão de Gross, eu fiquei alerta. Ele pagou os lanches e ambos saíram para rua lado a lado. Eu os seguia a uns quinze metros de distância, usando os transeuntes como camuflagem. Duas ou três vezes Gross, olhou para trás. Não exatamente para mim, mas virou a cabeça como se acompanhasse os carros passando, ou examinasse as vitrines. Logo depois, o homem apertou a mão de Gross muito agitado, e ergueu o braço para um táxi que passava vazio. Gross continuou andando e virou na esquina. O homem então entrou no táxi, e eu apertei o passo para alcançar Gross. Virei na mesma esquina e fiquei aturdida. – Ele sumiu! – falei sem querer. Não havia tantas pessoas naquela rua. E ele não teve tempo para anda-la até o final. Como poderia novamente ter evaporado no ar? Nesse momento comecei a pensar que algo de muito estranho circundava Willian Gross.
Com os ombros caídos, e totalmente desolada, me dei por vencida. Teria que voltar ao jornal sem uma matéria para escrever, e sem ter encontrado Gross. Mas ele que não pensasse que eu desistiria. Montaria guarda na frente de seu prédio se fosse preciso, pois ele tinha muito oque me explicar. Afinal de contas… – nesse momento, fui interrompida por uma voz que falava comigo.
– Ah, essa curiosidade negligente. – a voz era inconfundível. Virei-me para ver a face sorridente de Willian Gross me olhando do alto do seu um metro e oitenta e dois. Fechei meu cenho e fiquei ali o olhando, ao mesmo tempo em que cruzei os braços a espera de uma explicação plausível.
– Hum! – resmungou ele colocando a mão no queixo. – Parece que você precisa de um argumento sólido e franco sobre alguma coisa.
– No mínimo!
– E sobre oque seria?
– Ainda pergunta? – indaguei espantada.
– Mas é claro! Eu tenho vaga noção do que seja, mas como sei que não fiz nada de errado, é bem provável que eu esteja enganado.
– Pois muito bem, - comecei visivelmente sem paciência – poderia me explicar por que mentiu sobre ser deficiente?
Ele riu virando a cabeça e depois se voltando para mim. Sentia que meu rosto estava em chamas nesse momento.
– Eu posso lhe dizer por que menti, assim que você me disser quando foi que eu disse ser deficiente.
Espantei-me um pouco. Claro que ele não havia dito, mas era tão óbvio na noite anterior, que me surpreendeu e irritou o seu cinismo.
– Ora, e era necessário dizer? Para mim era evidente, já que você frente a dois homens enormes não moveu as pernas um centímetro. Sem contar que permaneceu em sua cadeira o tempo todo, desde que lhe vi a primeira vez, até o momento em que desapareceu por encanto ontem a noite… –  nessa hora percebi como lhe foi fácil levantar da cadeira e entrar rapidamente no prédio. Coisa que me deixou confusa na hora, e que deve ter lhe divertido muito.
– Você é um cínico Willian! – continuava eu com ira crescente.
– Alessandra, eu nunca disse que era deficiente, você viu os dados, e os julgou como sua mente está programada para julgar. Eu não posso ser responsabilizado por suas conclusões errôneas.
Considerei por um momento oque ele disse. Mas o fato é que eu odiava estar enganada.
– Veja. Eu estava na frente daquela casa de massagem a serviço, e a cadeira de rodas era meu disfarce. Eu não poderia, estando ainda exposto, sair do meu disfarce. Bem como não poderia deixar aqueles idiotas lhe fazerem mal. – ele tinha um tom de voz grave, mas suave, envolvente. E era muito convincente. Sem que eu percebesse, minha raiva foi cedendo gradualmente. 
– Mas e na frente do seu prédio? Poderia ter me contado.
– Poderia. Entretanto, eu havia acabado de lhe conhecer. E confesso que as pessoas de um modo geral, tem o péssimo hábito de me decepcionar. Sou bastante reservado, e se eu não estiver trabalhando, será muito raro me ver caminhando pelas ruas. As pessoas me chateiam com suas lamúrias e seu intelecto, que de modo geral, é limitado.
Ainda um pouco ofendida, talvez por ter que admitir que me precipitei nas conclusões, me rendi.
– Tudo bem Willian. Deixe pra lá.
– Não fique brava comigo. Na vida que levo, não posso confiar em nada que não conheça muito bem.
– Entendo. – em seguida meu lado prático retomou o controle. – Eu estava indo até sua casa. Quem sabe você queira jantar comigo. Eu não gosto de me sentir em dívida com as pessoas, e embora eu talvez eu nunca possa lhe pagar em proporção real a sua ajuda… – disse eu agora condescendente.
– Seria ótimo! –exclamou ele.
Tomamos um táxi logo à frente após ele insistir. Dei o endereço do apartamento de Marcelo ao motorista, e fiquei vendo a imagem borrada da cidade escurecer com o fim do dia. Não dissemos palavra durante a curta viagem. Marcelo ainda não havia chegado, oque era bem comum, pois ele trabalhava até bem tarde no escritório quase todos os dias. Foi Gross quem quebrou o silêncio enquanto eu descascava as batatas.
– Como vão as matérias? – perguntou.
– Bom, pra falar a verdade, eu não sou uma repórter. – disse eu. E depois comecei naturalmente a lhe contar a minha história. Gross era um tipo de pessoa que inspirava confiança ao se falar com ele. Sentia-me muito à vontade em lhe contar cada pormenor da minha vida, como se o conhecesse há décadas. Ao terminar meu relato, já estávamos jantando e a conversa fluía num tom mais animado, pois eu falava de meus sonhos ambiciosos. Gross me olhava atencioso enquanto eu falava, mas parecia que estava me estudando. Já que seus olhos se demoravam em certos pontos. Nos meus olhos, na minha boca, mãos, etc. Ele acompanhava meus gestos com os olhos injetados entre uma garfada e outra.
Ele estava vestido com uma camisa num tom vinho e uma calça jeans escura, quase preta. Seu rosto era determinado, suas sobrancelhas expressivas só faltavam falar e o cabelo era bem baixo. Sua altura de um metro e oitenta e dois, arrematava o efeito de respeito que sua figura causava. E ainda tinha a sua atitude. Gross dava a ideia, quando queria, de tratar-se de uma pessoa fria, programada, sem sentimento algum. Isso às vezes me incomodava um pouco, pois apesar de ser muito prática, também havia em mim um lado emocional muito forte.
– Oque espera conseguir neste jornal? – inquiriu ele.
– Experiência. Para depois conseguir emprego em outro lugar. Quero poder chegar a me tornar uma correspondente internacional, entende? Estar nos lugares em que as coisas acontecem, ação, aventura, suspense e perigo.
– Acha mesmo que precisa sair do país e trabalhar para um grande jornal ou canal de televisão para isso?
– E onde mais encontraria tal ação? Não que eu esteja reclamando da calmaria, mas neste país não acontece nada. – disse com sinceridade.
Gross levantou a sobrancelha esquerda olhando de soslaio para mim.
– Só porque os jornais, revistas e a tv não mostram nada, não significa que nada acontece.
Achei curioso seu comentário, e senti novamente aquela sensação causada por uma pequena fagulha de adrenalina me percorrendo o corpo.
– Ah, eu sei que nem tudo oque acontece é noticiado, mas não acredito que grandes coisas aconteçam por aqui.
– E se eu lhe fizer uma proposta? Teria a coragem de largar tudo para que eu lhe mostre as entranhas das verdadeiras notícias deste país?
Não pude controlar a excitação, e me remexi na cadeira.
– E como seria isso? – perguntei interessada.
– Eu contrato você agora como uma espécie de assistente pessoal, e você me acompanha onde eu for. Se aceitar, já teremos passagens aéreas para o extremo do país logo mais pela manhã.
– Tão rápido assim? Pensei que estivesse sem muito oque fazer.
– Estava. Porém aquele homem com o qual me viu conversando, é um delegado de uma bela cidade no norte do país. Aconteceu algo grave por lá, e que deve ser mantido em sigilo absoluto. E é nessas horas, em que sigilo, mas também saber decifrar situações estranhas são necessários, que eu sou solicitado.
– Mas oque aconteceu por lá? – perguntei curiosa e já com os olhos vidrados.
– Não sei muito, uma mulher foi assassinada. Esposa de alguém importante. Mas como não deve vir a público, e não confiaram nem no telefone, o meu amigo, delegado Carlos Teixeira, veio em pessoa pedir minha colaboração.
– Nossa! Isso é muito instigante! – fiquei inevitavelmente maravilhada. – Mas não sei se posso sair da cidade assim, é o único emprego que arrumei, tenho contas a acertar com o Marcelo…
– Eu começarei lhe pagando quinhentos reais por semana, e lhe adianto as duas primeiras. Oque acha?
Odiava quando meus olhos delatavam minha reação. Lá estavam ambos arregalados, prontos a fazer com que Gross reconsiderasse.
– Esse espanto tão natural é um sim? Suponho que seja. – disse ele abrindo seu largo e amigável sorriso.
Gross me adiantou de fato duas semanas de pagamento, ação que me possibilitou pagar a Marcelo o que lhe era devido e resolver algumas pendências. Arrumei meus poucos pertences numa mala, e liguei para Rodolfo, que não ficou muito feliz com oque eu disse. É claro que eu não consegui dormir naquela noite, de tão ansiosa que estava para me embrenhar nas mais alucinantes aventuras. E assim, às cinco da manhã do dia seguinte, levantava voo nosso avião, rumo a um acontecimento que eu jamais poderia esquecer.
Quase quatro horas depois, desembarcamos. E fomos recebidos no aeroporto por um homem alto e muito forte. Ele se vestia normalmente, mas tinha uma postura e modos, que me levaram a crer que se tratava de um policial à paisana. Gross foi cumprimentado com alegria e admiração.
Eu ainda não entendia por que Gross simplesmente não veio com o tal delegado, quando este retornou, mas oque eu sabia sobre a maneira de Gross trabalhar? Nada! Então achei melhor esquecer o assunto.
Fomos rapidamente apresentados, e o homem não perdeu um minuto se quer. Entramos em seu carro e mal havíamos afivelado os cintos, quando ele saiu a toda, dirigindo veloz e habilmente pela cidade. Rodamos por meia hora até que chagássemos ao nosso destino. Tratava-se de um hotel bem bonito e moderno.
– Esperarei o senhor aqui para leva-los ao local. – disse o motorista.
– Perfeito. – respondeu Gross
Registramo-nos no hotel, subimos para nossos quartos e Gross recomendou que não desfizesse as malas ainda. Deveríamos sair rapidamente. Assim, em dez minutos, já estávamos novamente na estrada. Eu confesso que não me lembro de muita coisa dessa parte. Tudo que me lembro, é que o sol já estava alto e brilhante no céu quando Gross me cutucou.
– Ei! Chegamos.
Pisquei e esfreguei os olhos ao descer do carro um pouco assustada por ter simplesmente dormido. Em minha defesa devo dizer que só havia voado uma vez de avião, e a experiência não fora muito boa. Logo, eu não dormira durante a viagem que cruzou o país. Estava cansada mental e fisicamente. Mas o cochilo de duas horas, pelo que pude conferir em meu relógio, me restaurara as forças, e agora eu estava totalmente energizada.
– Parei longe para não chamar a atenção. – disse o motorista – A rua é esta. O Dr. Teixeira está na casa. É o número 915. Eu tenho que retornar à delegacia.
– Obrigado. – respondeu Gross. E com um aceno de mão nos despedimos.
Chegando ao número 915 daquela rua eu notei a casa. Era bem ampla. Uma enorme janela de frente para a rua indicava que ali deveria ser a sala, e outra ao lado, reconheci como sendo a da cozinha. Não se viam portas, e deduzi que a entrada era lateral. O muro de pedra era tão limpo quanto alto, e o portão me pareceu ter custado uma pequena fortuna. A casa era pintada num tom verde que agradava os olhos,  o telhado era visivelmente precedido por uma laje. Gross andava lentamente. Havia dois carros parados à entrada, juntos à calçada.
– Vamos ver se entramos pelos fundos. – disse Gross ao perceber algumas silhuetas nas janelas das casas vizinhas.
Contornamos a casa sem dificuldade, pois uma construção em andamento nos dava passagem, já que ainda não haviam levantado os muros. O muro de pedra do 915 cercava toda a propriedade, sendo que exatamente atrás, havia um pequeno portão que dava num terreno vazio, no qual estávamos agora. Gross tentou o portão, e este se abriu quando o tocou. Então ele e eu, observamos a fechadura arrombada. Gross apontou para que eu prestasse atenção ao fato, mas era desnecessário. Internamente eu já teorizava os passos do assassino.  
Havia uma casa pequena nos fundos do grande quintal. Tinha dois cômodos e um banheiro. A casa que vi da rua estava uns dez metros à frente. Escolhemos o lado esquerdo do terreno para seguir, em cujo qual, se vendo da rua, deveria ficar a sala da casa principal, bem como a porta de entrada para a residência.


O executor

   
                             Capítulo 1
         
                                               Encontro    


Eu havia a pouco tempo começado a trabalhar  em um jornal, que era  um tanto sensacionalista demais para meu gosto, mas era o início do que eu realmente queria fazer. Como novata, é claro que a grande chance de ser aceita entre os grandes, era conseguir "a matéria". Não era exatamente oque eu chamaria de repórter investigativa, que na verdade era onde eu queria chegar, mas para começar estava bom. E embora não tivesse concluído a faculdade de jornalismo, um amigo me indicou para o emprego em que agora eu estava. Fui obrigada a trancar a matrícula por problemas financeiros e emocionais há dois anos.
Tinha quatro meses que tinha ingressado na universidade, quando um sopro do destino levou meus pais desta vida. Eles sempre se esforçaram ao máximo, e economizavam cada centavo que podiam para poder pagar meus estudos. Vi-me então obrigada a sair da grande metrópole, e ir morar com minha tia, irmã de meu pai, numa cidade do interior.
Tia Margarida tinha quarenta e dois anos e era empregada doméstica. Seu marido, tio Alberto, com cinquenta, era motorista de ônibus. Eles não tinham filhos, pois minha tia era estéril. Ambos levavam uma vida simples, mas relativamente confortável. Não houve para mim grande mudança de classe social, já que meu pai era marceneiro, e minha mãe enfermeira.
Como eu sempre fui uma pessoa pragmática, a morte de meus pais num acidente de carro, não me abalou ao ponto de uma depressão. Por cerca de uma semana chorei copiosamente. Depois disso, percebi que nada do que fizesse, nem o tamanho da minha raiva para com o destino, os traria de volta para mim. Assim sendo, decidi que deveria continuar minha vida como deveria ser.
Eu estava com quase vinte e um anos quando o acidente ocorreu. E me mudar de uma cidade grande para uma cidade interiorana, foi a única mudança real que senti. Nunca fui uma pessoa fácil de me apegar às coisas ou pessoas em geral. Sempre prática, me concentrava no que tinha, e quando não tinha mais, simplesmente seguia adiante. Claro que eu seria capaz de morrer pelos meus pais, mas se já não os tinha mais, de que adiantaria ficar me lamentando? Ir morar com meus tios foi bom no início, porém, depois de alguns meses percebi que nada dura para sempre, e que diferente dos finais de filmes, nada é perfeito. Tio Alberto era no geral um homem de fácil convivência, não se intrometia em nada que não lhe dissesse respeito. Minha tia, por outro lado, se mostrou com o passar dos meses uma pessoa autoritária e controladora. Eu cuidava da casa em todos os pormenores. Desde lavar a louça a preparar o jantar. No entanto, para tia Margarida nunca estava bom. Ela reclamava de tudo, verificava tudo mais de uma vez. E sempre achava um defeito em tudo oque eu fazia. Sem contar que onde quer que eu fosse, ela sempre queria saber o porquê, com quem, oque iria fazer, etc.
Eu fui suportando essa situação com toda paciência que podia encontrar, pois para dar meu grito de independência, precisaria de um emprego.
A única coisa que eu fazia além de cuidar da casa de meus tios, e que era algo só meu, eram as aulas de defesa pessoal. Era tio Alberto quem pagava as aulas, sob protestos severos de minha tia. Talvez ele quisesse agradar a nova moradora da casa, quando me lamentei de ter abandonado as aulas na outra cidade. Eu sempre fui aficionada por artes marciais.
Sempre me encantava com os filmes do gênero, em que o protagonista além de ser exímio lutador, percorria toda a cidade numa aventura alucinante. Aliás, era essa sede de aventura que me consumia. Eu queria algo que me fizesse estar em situações excitantes o tempo todo; e como todos me diziam quando pequena, que eu levava jeito para repórter, pois sempre brincava de entrevistadora, eu decidi cursar o jornalismo. E embora não o tenha concluído, sentia que o destino havia me reservado algo melhor, pois o importante não era ser repórter em si, e sim ter uma vida com viagens, dias cheios de ação e tensos momentos de perigo.
Outra coisa que sempre me interessou foi qualquer tipo de investigação. Em toda a minha vida eu sempre fui mais curiosa que uma pessoa normal. Meus pais às vezes ficavam de cabelo em pé, tamanha era a quantidade de perguntas que eu fazia sobre determinado assunto. Então, juntando tudo isso, me vi às voltas de querer me tornar uma repórter investigativa. Nada seria mais perfeito. Mas para chegar a tanto, teria primeiro que sair da casa de meus tios, pois minha tia era controladora ao extremo de querer que eu arrumasse um emprego como o dela, porque seria algo fácil, e colocaria mais comida na mesa.
Eu acredito que todo tipo de trabalho é nobre, porém, não me conseguia ver fazendo algo que não me inspirasse a continuar. Para mim, quando se faz algo apenas por obrigação ou necessidade, a vida torna-se um martírio. Não! Eu teria que fazer aquilo que eu queria fazer, e não oque me impusessem. Portanto, me era claro que eu teria que sair daquela casa. Mas o fato é, que já com meus vinte e dois anos, eu ainda tinha receio do mundo. Meus pais sempre se preocuparam que eu estudasse, então nunca tive que trabalhar, nem me preocupar com a vida lá fora. Agora, mesmo adulta na idade, me sentia ainda com quinze anos, uma menina assustada, com medo de sair pela vida com a cara e a coragem. Tinha receio de acontecer algo ruim, e depois não ter para onde voltar. Nessa época consegui um emprego numa lanchonete perto de casa, na esperança de juntar algum dinheiro para dar o fora dali. Infelizmente para mim, o salário era baixíssimo, e com tia Margarida me controlando, quase nada me sobrava.
Eu tinha um amigo do tempo da escola chamado Marcelo. Embora eu tivesse me mudado de cidade, nós ainda nos correspondíamos quase todos os dias pela internet. Marcelo era também meu confidente, e sempre soube da minha vontade de voltar à cidade grande. Ele dizia que no dia em que eu quisesse, poderia ir morar com ele, pois estava morando sozinho num apartamento alugado, e que uma companhia seria muito bom.
Oque eu realmente precisava era de um empurrão. Algo que fugisse do meu controle e que me fizesse definitivamente expulsar o medo do mundo ao meu redor, para que eu pudesse andar com minhas próprias pernas. Não demorou muito. Aos vinte e dois anos, apesar de não me julgar linda como a maioria das garotas da minha idade, me achava atraente com meu um metro e sessenta e oito, sessenta quilos, e olhos castanho-claro. Meu cabelo, também castanho-claro, era encaracolado, comprido, e emoldurava delicadamente meu rosto arredondado, com feições de menina, mas com um penetrante e desafiador olhar de mulher. Não se passavam dois dias sem que eu ouvisse gracejos e cantadas sortidas na lanchonete. Meus ombros eram delicados, com curvas suaves, meus seios eram médios e bem rijos. Tinha uma cintura fina, oque os homens achavam muitíssimo atraente. Meu quadril era levemente desproporcional a linha dos ombros. Coxas roliças e firmes, e nádegas bem empinadas e tão firmes quanto às coxas. Graças talvez, às aulas de defesa pessoal.
Talvez para minha idade, eu fosse um tanto inocente no que se referia a sexo. Não que eu não soubesse como tudo funcionava, mas para mim, era um assunto com o qual eu não me preocupava. No entanto, essa ingenuidade não me impediu de perceber que conforme o tempo passava, meu tio começava a me olhar de outra maneira. Claro que no início eu achava que era apenas impressão minha, e que na verdade meu ego feminino estava florescendo e me fazendo imaginar coisas. Meu corpo se desenvolveu tardiamente, e só agora eu poderia dizer que tinha realmente um corpo de mulher.  
Num belo e ensolarado domingo de março, eu estava em casa, e como era de costume, pesquisava na internet ao mesmo tempo em que ouvia música para passar o tempo. Minha tia havia ido ao supermercado fazer compras. Eu vestia um short jeans curto, com as barras desfiadas, e uma camiseta regata verde colada ao corpo. Meu cabelo estava atado atrás, no estilo rabo de cavalo. Foi quando meu tio abriu a porta do meu quarto e entrou sem cerimônia.
– Oque está fazendo querida?
Querida? Ele nunca me chamara assim. Terei problemas – pensei comigo. – Pesquisando algumas coisas tio. – respondi secamente.
– Você gosta mesmo dessa coisa de repórter não é? – falou se aproximando e notando oque havia na tela. – Está há horas nesse computador. Aposto que está toda tensa, e se continuar assim, amanhã não vai conseguir trabalhar.
Eu senti um calafrio nas costas conforme sua voz denunciava que ele estava chegando mais perto.
– Tenho certeza de que se eu fizer uma massagem nesses ombrinhos, você vai se sentir bem melhor. – disse ele colocando a mão esquerda no meu ombro direito. Nesse momento, ao invés de ficar assustada, eu me encolerizei. Minha praticidade em julgar as coisas me fazia perceber que talvez oque ele quisesse, era justamente me deixar constrangida para que eu não resistisse. Para seu espanto, eu simplesmente tirei o olhar do monitor devagar, e olhei em direção à mão dele pousada em meu ombro, como quem olha um inseto irritante que insiste em lhe perturbar, em seguida, com um piscar demorado de olhos, dirigi meu mais frio olhar na direção dele. Meu tio "leu" instantaneamente oque se passava na minha mente quando meus olhos encontraram os dele, e retirou sua mão imediata e totalmente constrangido.
– B... bom, - balbuciou ele -- talvez eu esteja lhe atrapalhando. Melhor deixar você continuar então.
Novamente eu nada disse, deixando que meu olhar falasse por mim, e ele que tirasse suas próprias conclusões. Ele virou nos calcanhares e saiu, cerrando porta atrás de si.
– Mas que diabos - pensei. – Era só oque me faltava mesmo, meu tio querendo se engraçar comigo. Um bom tempo se passou sem que nada parecido voltasse a acontecer, e isso me fez pensar que meu tio tinha entendido o recado.
Certa noite, eu voltava do trabalho na lanchonete. Chovia um bocado, e embora eu estivesse com um guarda-chuva, cheguei à casa toda ensopada. Como era de se esperar, minha tia me olhou com desaprovação. Oque me fez ferver por dentro. Mas sem dar muita atenção a ela, entrei gotejando em todo o piso e corri para o banheiro. A essa altura, a chuva já havia parado. Enrolei-me numa toalha após tirar as roupas molhadas e fui ao meu quarto pegar roupa seca. Voltava ao banheiro quando ouvi minha tia dizer que estava de saída, e lembrei-me que ela havia combinado com a vizinha de ir à quermesse no centro da cidade naquela noite.  
Quando a ducha quente bateu em meu corpo, senti um relaxamento tal, que minhas pernas fraquejaram. Era como se tivesse levado uma surra, e agora alguém me afagasse. Perdi-me em pensamentos da época da escola, dos meus pais, dos meus sonhos e planos futuros. E já não era raro eu fantasiar situações em que eu era uma repórter que fora enviada a um lugar distante, vivenciando perigos e as mais tensas situações, em busca de um furo de reportagem investigativa.  
Fui arrancada desses devaneios por um clique metálico quase imperceptível. Então apurei os ouvidos na expectativa do ruído se repetir, mas isso não se sucedeu. Terminei meu banho, me enrolei na felpuda toalha cor de creme, abri a porta do box e estaquei. De pé, encostado no batente da porta estava meu tio, fitando-me com um olhar de puro prazer. Seus olhos brilhavam enquanto me mediam de cima a baixo. Senti a pele de meu rosto queimar em brasa, ao passo que meu coração acelerava-se. Foi então que sem nenhuma cerimônia ele disse:
– Quer ajuda pra se secar? - com aquele sorriso no rosto que só serviu pra me enfurecer a beira da loucura.
Tentei manter a calma e a concentração, pois nas aulas de defesa pessoal, havia aprendido que uma mente com raiva não consegue encontrar a solução mais prática de um problema. Ele vestia uma camisa escura, que estava aberta até o terceiro botão. Isso revelava seu peito cabeludo, oque me dera um princípio de náusea. Estava também com uma bermuda bem folgada e de chinelos. Relaxei meus músculos o máximo que pude naquele pequeno espaço de tempo; olhei-o nos olhos bem profundamente, respirei fundo e finalmente disse:
– Saia do banheiro, por favor.
Ele fez uma cara estranha, acho que não esperava que eu tivesse uma reação tão calma. Mas essa era a ideia! Com certeza ele esperava me desconsertar, me deixar tímida, para que pudesse ter certa vantagem se é que se pode dizer isso. Mas não lhe dei essa chance, minhas palavras saíram da minha boca como adagas em direção a ele. Depois da cara de meio espanto, como era de se esperar, ele tentou tomar o controle da situação como qualquer homem nessa situação faria. Com um tom um tanto agressivo.  
– Olha aqui Alessandra, você sabe muito bem oque eu quero, então por que não paramos com esses joguinhos idiotas e você cede logo de uma vez, já que é oque vai acabar fazendo mesmo, hein?
Não pude conter meus olhos, que se arregalaram. O que me deixou fula da vida. Sempre tentei a todo custo controlar minhas reações emotivas, e quando por ter sido surpreendida não conseguia, me entregava a uma fúria interna.
– É isso o que você acha? Que se insistir muito eu vou ceder? Você só pode estar louco! – minha voz era calma, mas firme. E em nenhum momento tirei meus olhos dos dele. Não! Não o deixaria pensar que estava me esquivando, ganhando tempo à espera de um milagre que me salvasse ou algo assim. Queria mesmo que ele visse que oque tinha na minha voz era atitude, era determinação.
– Ah, então você não cederia? Pois bem, nesse caso acho que vou ter que te mostrar que eu sempre consigo oque eu quero mocinha.
Não teria jeito. Pisquei os olhos e os abri em uma fração de segundos. E lá vinham as mãos dele em direção a mim. Mais precisamente a mão direita dele em direção meu ombro esquerdo. Foi então que um movimento das aulas defensivas me veio à mente. O banheiro era amplo, mas seria o suficiente? Não tinha tempo para pensar, a mão dele se aproximava de mim. Eu de costas para o box que estava ainda com a porta aberta. Contraí meus dedos dos pés para me firmar ao chão o máximo possível. Nesse momento em que a adrenalina poderia fazer meu coração explodir, eu entrei numa espécie de transe. E a mão dele chegou à distância que eu queria, cerca de vinte centímetros do meu ombro esquerdo. E então todos meus movimentos seguintes fluíram no mais absoluto instinto.
Levei meu corpo para a direita dobrando um pouco o joelho direito, ao passo que também girei levemente o corpo para a esquerda. Recolhi meu braço esquerdo trazendo minha mão pra cima com a qual lhe agarrei firmemente o pulso direito. Em seguida, meu corpo já subia novamente para posição ereta, mas continuava girando para a esquerda, enquanto seu antebraço era agarrado pela minha mão direita, e meu cotovelo se apoiava em seu peito.
Fácil prever oque aconteceu depois. Quando meu corpo terminou de girar, eu havia simplesmente arremessado meu tio para dentro do box, não sem antes, numa fração de segundos, enquanto seu corpo pesado passava em frente ao meu, eu pudesse vislumbrar o pleno terror em seus olhos.
Mas entendam que toda essa manobra se deu em um segundo ou menos. E meu pobre tio foi dar com a parte de trás da cabeça de encontro ao registro que regula o chuveiro. Após bater com certa força contra o registro, seu corpo mole escorregou suavemente até o chão. Eu fiquei ali de pé olhando para ele.
Ele, entre gemidos tentou se ajeitar e sentou-se no chão encostando-se a parede. Seu pescoço e a gola de sua camisa, gradativamente ganhavam um tom escarlate, assim como logo depois, o piso abaixo dele. Eu me agachei ainda do lado de fora do box e o fitei dizendo:
Bom querido tio, – comecei irônica -- acho que esse acontecimento acaba com a possibilidade de eu permanecer nessa casa. O que é até bom! Há tempos que quero sair daqui, mas acho que tinha receio de não saber lidar com o mundo lá fora. Mas agora; bom, agora meu espírito acaba de se encher de coragem e determinação, graças a você. Obrigada!
Levantei-me e fui em direção à porta ouvindo seus gemidos ininteligíveis. Com os pés já no corredor, vire-me para ele e disse:
– Vou sair dessa casa agora. Fique à vontade para contar a história que quiser à minha tia. Eu só não quero ter que ver qualquer um de vocês nunca mais em minha vida.
– E não se preocupe com seu ferimento, é superficial e feliz ou infelizmente, não vai morrer por isso.
Não tenho certeza se ele ouviu as minhas últimas palavras, pois antes de meus lábios terminarem de articulá-las, seus olhos se fecharam declarando seu desmaio. Fui para meu quarto e me vesti rapidamente.
Do meu celular, liguei para emergência e pedi uma ambulância, declarando que meu vizinho escorregara no banheiro e estava ferido. Reuni rapidamente as coisas que tinham algum valor real para mim em uma mochila e uma mala. Saí noite afora. Não só a chuva havia cessado, como as nuvens haviam desaparecido. E a lua agora reinava brilhante no céu.
Liguei para meu amigo Marcelo, e assim que ele atendeu e contei minha história, ele disse que o esperasse perto da rodovia, pois estava vindo me buscar. Nesse momento, fiquei feliz por não ter contado à minha tia sobre o pequeno aumento que eu havia recebido meses atrás, oque me possibilitou guardar algum dinheiro.
Morar com Marcelo era perfeito. Ele não ficava muito em casa, pois estava estagiando em um escritório de advocacia. E quando estava presente, mais dormia do que qualquer outra coisa.
Minha vida estava assim, quando Rodolfo, um antigo amigo de meu pai, me reconheceu na rua. Ele havia me prometido um emprego de repórter no jornal que ele era editor chefe, tão logo eu concluísse a faculdade. Ao lhe contar minha atual história, ele disse que não podia fazer muito, mas se eu quisesse de verdade estar em um jornal, ele poderia me arranjar algo por lá. Salientando que com persistência e talento, eu poderia chegar onde queria. Como eu havia voltado à cidade grande, e estava desempregada, aceitei na mesma hora. O caminho certamente seria árduo, mas ali estava eu; em uma redação de jornal, dois dias depois, no exato dia em que completava meus vinte e três anos de idade, e sendo uma faz- tudo. Oque ia de servir café, a correr pra lá e pra cá com pilhas de papel contendo artigos e reportagens que o editor deveria, ou não aprovar.
No meu terceiro dia no jornal,  já era quase noite, e eu estava separando uma pilha de documentos na sala de Rodolfo, quando este recebeu um telefonema breve. Rabiscou algo num papel e ao desligar abruptamente ordenou aflito:
– Chame o Henrique, rápido!
Henrique era um repórter experiente, que estava no jornal havia oito anos. Quando voltei junto com ele, o editor disse olhando-o:
– É o Paulo, o filho do banqueiro. Acaba de ser visto na entrada de uma sauna gay no centro. Vá para lá agora e não volte sem a primeira página. – disse ele esbaforidamente.
– Leve o Antônio, e diga a ele pra tirar muitas fotos. – completou.
Enquanto falava seu olhar me atingiu.
– Sua chance Alessandra, vá junto e aprenda alguma coisa hoje.
Meus olhos brilharam de satisfação. Minhas mãos tremeram, mas me mantive firme.
– Sim senhor. – disse eufórica – Obrigada!
E lá fomos os três rumo ao centro após Henrique anotar o endereço.  Paulo, um típico playboyzinho, era um rapaz de vinte e oito anos, filho de um milionário banqueiro. Este, famoso por suas generosas doações às entidades carentes. Havia rumores de que o rapaz era o desgosto de seu pai, pois se envolvia sem cerimônia em escândalos o tempo todo. Escândalos esses, com cujos quais, seu pai desembolsava muitíssimo dinheiro para que não viessem a público.
Chegando ao local, que não era longe da redação, avistamos Paulo do lado de fora, conversando com alguns rapazes. Saí do carro e fiquei na calçada, olhando-o do outro lado da rua. Henrique e Antônio permaneceram no carro, este último, parecia estar tendo problemas com a câmera.
Arruma logo isso! – gritava Henrique.
– O cartão de memória emperrou. Droga! – desesperava-se Antônio.
Nesse momento, um carro passou a toda velocidade por nós. Um homem se colocou para fora da janela traseira e disparou uma arma repetidas vezes. Fiquei em choque, imóvel. Segundos depois uma viatura de polícia passou no mesmo sentido e em igual velocidade. Quando recobrei o domínio sobre meu corpo, pude ver sem crer Henrique sair com o carro cantando pneus atrás da viatura. Era óbvio, que lhe pareceu que uma perseguição policial, era uma manchete melhor do que um banqueiro cujo filho poderia ser gay. Sem saber oque fazer, olhei para Paulo. Atravessei a rua e me aproximei do prédio, cuja entrada para a tal sauna, ficava na lateral. Aquilo era um beco, formado pelo prédio onde ficava a sauna e um adjacente.
Escondi-me atrás de uma lixeira e fiquei vendo-o enquanto murmurava algo para quem atendeu à porta, após ele bater. Dois segundos depois, ele jogou o cigarro que terminara e entrou, seguido por três rapazes altos e fortes.
– E eu não tenho uma câmera. – pensei irritada.
Então me enchi de coragem e fui em direção à porta, que estava a cerca de vinte metros de mim. Andei confiante segurando meu celular dentro do bolso e pronto pra usá-lo, pois era a única câmera que tinha.
Estava bastante frio naquela noite. O vento assoviava em meus ouvidos e meus tornozelos doíam. Quando eu estava a menos de dez metros da porta, esta se abriu. Tentei disfarçar e fazer parecer que apenas passava por ali. O som daquele lugar encheu o beco e não foi difícil perceber que era muito movimentado. Mas infelizmente não tive tempo de elaborar minhas conclusões, nem de imaginar o nome da minha manchete de primeira página. Pois quando a porta se abriu, dois homens saíram de dentro do local. Visivelmente bêbados, olharam em minha direção.
– Terei problemas. – pensei
Não podia ser diferente. Um deles disse:
– Olha só Roberto, que chuchuzinho!
– É mesmo Michel, acho que ainda sobrou alguma energia pra gente se divertir um pouco mais. O que me diz benzinho? - disse o outro.
Acho que não senhores. – iludi-me – E se me derem licença estou com pressa. – e tentei então passar por eles e me dirigir para casa o mais rápido possível. Sei oque deve estar pensando caro leitor.
"Ora Alessandra, você não é perita em defesa pessoal?"
Bem, além de eu não ser perita em nada, aqueles homens eram enormes, brutamontes mesmo. Sem contar que estavam sob forte influência alcoólica, oque faria certamente com que não tivessem noção de sua força. Mas é claro que eu não me entregaria sem lutar. No entanto é sempre melhor evitar um conflito se possível. Mas infelizmente não era o caso.
Roberto, o maior deles, atravessou na minha frente quando fiz menção de tentar passar.
– Ei! Aonde pensa que vai doçura? - disse ele numa voz pastosa, e com um hálito que me provocou asco.
– Não está querendo bancar a difícil não é mesmo? - falou Michel, já atrás de mim.
– Como eu saio dessa agora? - pensei eu
Michel me agarrou pela cintura muito forte, enquanto Roberto agarrou meus seios com tanta força que só não gritei, porque descarreguei minha agonia com as duas mãos abertas em suas orelhas, com toda força que consegui reunir. Ele saltou pra trás, cambaleou e caiu três metros longe.
– Sua vaca! - exclamou ele do chão. Nesse momento, Michel abraçou-me pela cintura e me espremeu de tal forma que gemi baixinho enquanto tentava me soltar empurrando em vão seus grossos braços pra baixo.
– Ah, ela é valente. Adoro quando resistem. - seu hálito quente no meu pescoço me fez estremecer de medo, de raiva.
Pensei comigo que se quisesse sair daquela situação teria que me acalmar. Curvei meu corpo pra baixo em direção aos braços dele e me debati com força. Ele por sua vez, inclinou o corpo pra frente a fim de me controlar.
– Obrigada. - pensei
E levantei meu corpo com toda força jogando-o pra trás me apoiando nos braços do meu agressor. A ideia era acertar-lhe uma cabeçada no nariz que certamente o faria pensar duas vezes antes de atacar outra mulher. Mas infelizmente pra mim, ele desviou. Fiquei pasma.
– A-há! Oque é isso benzinho? Pensa mesmo que é a primeira mulher que tenta resistir ao Michel aqui? – e riu histericamente após dizer isso.
Ele me apertou ainda mais, senti que mal conseguia respirar. Meu estômago doía tanto que senti que iria desmaiar. Juntei minhas últimas forças e cravei as unhas em seus braços. Péssima ideia, pois ele me apertou ainda mais me levantando no ar. Minha boca se abriu, o ar fugiu de meus pulmões numa frase soprada.
– Me solte seu... - foi tudo oque consegui dizer antes de minha visão falhar.
E então eu ouvi uma voz. Era a voz de um homem que eu não sabia de onde vinha, pois estava completamente desnorteada.
– Ei! Você. Solte a garota seu animal. - disse a voz do tal homem.
Nesse momento Michel meio desorientado, levantou a cabeça para ver quem falava, e ao desviar sua atenção, frouxou um pouco os braços. Mas eu estava completamente sem forças para reagir. Então tudo que consegui fazer, foi levantar a cabeça também. Foi quando vi por relance um homem que se encontrava na entrada do beco, mas tinha algo errado.
– Ele é muito baixo. – pensei eu na hora.
Mas quando Michel falou, eu compreendi do que se tratava.
– Ah vai procurar oque fazer aleijado, vê se não enche. - disse ele.
Então era isso. O homem que vinha em meu socorro estava numa cadeira de rodas.
– Oh Deus. - pensei comigo – Agora seremos duas vítimas se ele não sair daqui.
E não é que ele não saiu? Ao contrário! Veio em direção a nós.
Nessa altura dos acontecimentos, Roberto já estava de pé cambaleando para perto de Michel e eu.
– Mas oque é isso? - disse ele rindo – Você acha mesmo que pode com a gente, seu inválido?
– Rapazes... - começou aquele homem com uma voz tenra e envolvente – vamos lá, larguem a moça. Isso não vale a pena.
– Olha cara, - falou Michel – oque não vale a pena é você acabar se machucando porque não sabe ficar na sua. Estou avisando pela última vez... Vá embora!
– Vá, por favor. - implorei entredentes
Ele me ignorou completamente e disse:
– Também vou avisar pela última vez então. – agora seu tom de voz elevou-se e ficou pavorosamente grave - Larguem a garota agora, enquanto ainda podem ir pra casa andando.
Nossa! Ou ele era louco ou tinha uma arma. Não era possível um cadeirante se mostrar tão valente sem ter como se garantir.
– Uaaallll! Agora fiquei com muito medo. – disse Michel.
– Eu também. – retrucou Roberto sem tanto humor – E pra mim já chega!
Disse ao começar a caminhar em direção ao deficiente. Roberto andava agora já sem tanta dificuldade em direção aquele homem na cadeira de rodas. Obviamente a adrenalina que agora corria em seu sangue disparada pela raiva, amenizou os efeitos do álcool. Eu por outro lado, parecia ver tudo em câmera lenta, enquanto Michel voltava a me segurar mais fortemente.
– Meu amigo Roberto vai dar uma lição nesse enxerido.  
Aquele homem truculento andava ameaçadoramente em direção ao pobre homem na cadeira de rodas, e eu ali, imobilizada sem poder fazer nada. A não ser...
Gritar. É claro! Porque não pensei nisso antes? Reuni todo ar que pude nos pulmões e... E o maldito Michel percebeu, apertando-me esmagadoramente com um dos braços e usando a outra mão pra tapar-me a boca.
– Nada disso gracinha. Eu já te disse que não sou idiota, então fique bem quietinha que você é a próxima a brincar, depois que meu amigo Roberto cuidar desse cretino.
– Acabou, é o fim – desesperei-me em pensamento. – O enorme Roberto vai fulminar o pobre homem. – e então, aconteceu. Roberto avançou com os braços esticados em direção ao pescoço do cadeirante, quando de repente, os braços daquele deficiente, até então pousados sobre seu colo, começaram a se movimentar assustadoramente rápido, ao mesmo tempo em que parecia que algo entre os vultos de seus movimentos reluzia à luz da lua. Ouviram-se três baques surdos, acompanhado do som abafado do corpo de Roberto prostrando-se no chão a um metro da cadeira de rodas com o rosto no concreto frio e úmido. Meus olhos arregalaram-se, mas não antes de ver os braços do deficiente girarem velozmente e voltarem a sua posição original sobre suas inertes pernas. Michel, boquiaberto, como era de se esperar, me soltou com um empurrão e correu em direção ao cadeirante. Era indescritível a fúria em seus olhos. Com o empurrão, fui de encontro a uma lixeira com um baque estrondoso, mas me equilibrei antes de cair no chão. Virei a cabeça para a cena a tempo de ver Michel alcançando a cadeira de rodas. E novamente aqueles braços se movimentaram no ar. Mas não tão rápido dessa vez. Lento o bastante para que eu pudesse reconhecer o motivo do reluzente brilho anterior.
– Um nunchaku! – exclamei sem perceber. Mas Michel também pode comprovar que desta vez ele se movimentou mais devagar, pois não teve dificuldade de agarrar uma das extremidades da arma e arrancá-la da mão do deficiente. E ali, naquele momento derradeiro, Michel parou. Ficou ereto, seu olhar era frio e o sorriso no canto da sua boca era apavorante. Foi só uma fração de segundos, mas eu pude perceber oque aquilo significava. Michel estava dizendo com seus olhos e sorriso:
Eu te avisei. Agora é tarde, você é meu!
E então Michel avançou confiante pra cima do homem imóvel.
Outra coisa que pude reparar depois que pensei nessa cena tempos depois, é que naquele momento, o rosto do deficiente estava total e alarmantemente impassível. Nada se podia ler em sua expressão. Nem medo, nem confiança; nem terror, nem certeza.
Michel com os dentes rangendo avançou sem medo para o homem, que inacreditavelmente não se mexeu, não reagiu de forma alguma, até que as mãos de Michel tocassem sua garganta. Quando tocaram, novamente eu vi aqueles braços se mexerem. E como se mexiam! Eu fiquei totalmente pasma ao ver com que maestria e leveza aqueles braços faziam aqueles movimentos. Oque aconteceu foi que por cerca de cinco intermináveis segundos, o pobre Michel recebeu a maior sequência de socos, cotoveladas e cabeçadas que eu já vi na vida inteira. Ao fim dessa sequência esplendorosa de golpes, o grandalhão jazia desacordado, com a cabeça sobre o colo do deficiente. Eu comecei a caminhar em direção a ele incrédula, os olhos esbugalhados como os de uma criança que vê um urso de pelúcia gigante.
– Minha nossa! –  exclamei – Isso foi... incrível!
– Obrigado. – foi tudo que disse ele enquanto empurrava o desmaiado Michel para o chão.
– Olha moço, muitíssimo obrigada... eu... eu nem sei oque dizer.
– Não precisa dizer nada. Eu vi que precisava de ajuda, e ajudei... fim. Fico feliz de ter podido chegar a tempo.
– Ora oque é isso? Oque você fez foi inacreditável! Eu preciso lhe compensar de alguma forma.
– Não é necessário. Como eu disse, fico feliz de ter ajudado. Além do mais, eu preciso ir para casa, tenho assuntos a tratar que não podem esperar.
– Nesse caso – insisti – deixe-me ao menos lhe acompanhar, é o mínimo que posso fazer depois do que você fez por mim.
O homem franziu a testa por um segundo.
– Tudo bem. – disse por fim – Acho que não tem problema.
– Obrigada. A propósito, eu me chamo Alessandra. – disse eu estendendo a mão.
– Muito prazer Alessandra, – respondeu ele cumprimentando-me –  Willian Gross, a seu dispor. – completou sorridente.