segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

             
                 Capítulo 3

                 A cena do crime


Ele entrou naquela sala de maneira despreocupada. Até parecia que estava examinando as vitrines de uma loja. As mãos nos bolsos da calça jeans preta, o olhar despreocupado e o andar totalmente aleatório. Eu ainda um tanto insegura, entrei seguindo sua sombra, o usando como um escudo para minha incerteza. Não era uma situação comum para mim, e confesso que a apreensão sobrepujava minha excitação.
Uma chuva começou a precipitar-se preguiçosamente lá fora, e o vento gélido uivava, reclamando seu lugar na paisagem. Calçamos protetores nos sapatos, e pares de luvas que nos foram entregues por um policial à paisana que vigiava a porta. Atravessamos a sala onde espessas cortinas cobriam a enorme janela com vista para a rua. Pude reparar os móveis caros e de mau gosto ao meu redor. Dirigimo-nos a um corredor localizado à direita de quem entra, na parede à frente. Neste corredor, ao lado esquerdo, uma ampla abertura dava passagem para a cozinha.  Do lado direito mais à frente, duas portas, e mais uma ao fundo deste corredor. Os quartos e um banheiro. - supus naturalmente. A primeira porta em que Gross olhou era o banheiro. Assim que ele voltou ao corredor, olhei curiosa.
Lascas e farpas de madeira se afogavam em poças e respingos de sangue que se sobrepunham numa pintura grotesca e nauseante. Ainda pude perceber oque me pareceu ser um punhado de cabelos loiros em meio ao piso escarlate. Retornei horrorizada, e voltei a seguir meu amigo de perto.
Chegando à porta do segundo quarto, ele parou sob o batente. Eu logo atrás, tentava olhar para dentro do aposento pelos lados de seu corpo, mas não conseguia.
– Ah! Finalmente você chegou! – disse alguém de dentro do quarto com um tom de voz que denotava o mais puro alivio. Gross avançou lentamente, virando a cabeça para os lados, para cima e para baixo.
– Odeio viajar. Você sabe. – disse Gross num tom desanimado. Eu o segui quarto adentro. E me contive pra não fazer uma cena quando vi o motivo que nos trouxera ali. É claro que eu já esperava algo do gênero, mas entre ter ideia de algo, e ver com meus próprios olhos, havia uma colossal diferença.
– É, eu sei Gross. Desculpe-me, mas foi necessário. - respondeu o homem que agora eu podia ver.
Tratava-se do delegado Carlos Teixeira, que eu vira horas atrás em São Paulo.
– Delegado, esta é Alessandra, minha assistente. – apressou-se Gross em explicar minha presença.
– Olá Dr. Teixeira, é um prazer. – disse eu reservadamente.
– Muito prazer Alessandra. – respondeu ele apertando minha mão gentilmente.  
Havia mais um homem no quarto além do delegado. E parecia não ter ficado muito feliz com a intromissão.
– E então Carlos, oque eu posso fazer por você que este capaz senhor da perícia não pôde? - perguntou Gross.
O homem levantou a cabeça rapidamente, e fez seu olhar saltar de Gross para o delegado, obviamente ofendido. Teixeira olhou-o com uma cara de quem pedia paciência. Embora eu percebesse tudo a minha volta, não conseguia fazer meu olhar se desvencilhar do impulso de olhar oque estava no meio do quadrado que formamos com nossas posições. No quarto, à esquerda da porta, havia uma cama de casal. Esta tinha sua lateral afastada cerca de um metro de uma das paredes. Do outro lado, entre a cama e a janela, um tapete com desenhos exóticos, de uns dois metros de largura por dois e meio de comprimento. Havia um criado mudo em ambos os lados da cama. E acima dela, um quadro horroroso com uma imagem do que pareciam ser tigres lutando. Na parede oposta, um armário com portas de vidro abrigava algumas armas de fogo antigas, facas e punhais, aparentemente da mesma época. A janela era de alumínio, bem ampla. As cortinas, de um tecido muito bonito e caro, estavam cerradas. Mas o principal estava ali aos pés da cama. Uma pequena mesa de madeira ladeada por duas banquetas. Numa delas, totalmente inanimado, jazia o corpo de uma mulher.
Eu continha a todo custo a vontade de levar a mão à boca, mas ao mesmo tempo, me mexia vagarosamente para não perder nenhum detalhe da cena. E Gross parecia fazer o mesmo. Girava o corpo sem sair do lugar esquadrinhando o quarto com seu olhar. E chegou a dar uma olhada em baixo da cama, levantando o lençol com uma das mãos.
Antes que eu pudesse especular a idade da vítima, o delegado Teixeira interrompeu meus pensamentos.
– O chamei aqui porque este é um caso que precisa de sigilo, como já lhe disse. – falava ele para Gross. – Esta mulher…
– Tem entre trinta e oito e quarenta e três anos, não mais que isso. – interrompeu Gross – Problemas conjugais, alcoolismo, fumante, viciada em chocolate… - neste ponto ele parou por um instante de falar enquanto andava pelo quarto vagarosamente. Percebi o tal perito mostrar-se mais interessado em meu amigo.
– Personalidade um tanto infantil, – prosseguia Gross – ou mimada mesmo, como vocês preferirem. Um tanto narcisista e bastante autoritária.
Teixeira o olhava com um risinho nos lábios, ao mesmo tempo em que de vez em quando, desviava o olhar para o perito, que talvez não tenha percebido, mas estava com a boca semiaberta. Então Gross afastou-se do corpo. Parou ao lado da cama, colocou a mão esquerda no bolso da calça e a direita na nuca, com a cabeça meio abaixada. E sorriu quase imperceptivelmente. Desfez a pose e colocou as mãos nos bolsos do sobretudo. Então olhou novamente para o corpo. 
– O assassino atirou primeiro em sua perna, depois em seu coração. Isto aconteceu no banheiro, é claro. Então a trouxe até o quarto e a colocou onde está…
– Que absurdo! - exclamou o perito. Como você poderia saber que ela foi atingida primeiro na perna e depois no peito? Poderia muito bem ter sido o oposto. - afirmou ele com decisão.
Nesse momento imaginei que iria começar uma ferrenha discussão à cerca de métodos, com frases e palavras que eu desconhecia. No entanto, tudo que Gross fez, foi levantar vagarosamente os olhos para Teixeira. Um olhar dos mais desanimados e preguiçosos que já vi. O delegado deu de ombros. Gross olhou para o perito de cima a baixo. Voltou a mirar seus olhos e disse:
– Eu poderia lhe ensinar o seu trabalho, mas sinceramente eu não estou com a mínima energia para isso. E se não se importar em não me interromper mais, prometo que termino logo, assim você poderá voltar a examinar a cena e tirar suas próprias e errôneas conclusões.
Eu me contive para não rir. O perito, por outro lado, encolerizou-se. Sua face ficou rubra e seus músculos crisparam-se. E quando parecia que uma altercação seria inevitável, Gross disse:
– Ah, por favor! Não vamos partir para agressão física. Eu sei que o senhor é um excelente perito criminal, que já esteve em inúmeras cenas de crime como esta. Mas acredite! Este crime é especial; do contrário eu não estaria aqui. E digo isso não porque sou convencido, e sim pelo fato de que se este crime não tivesse os detalhes interessantes que tem, como acabei de comprovar, eu não teria aceitado investiga-lo.
Foi incrível como Gross inseriu sorrateiramente elogios ao trabalho e experiência do perito enquanto falava. Quando viu de certa forma Gross fazer referência à sua carreira certamente extensa, os músculos do homem relaxaram visivelmente. Talvez porque ele não tenha percebido que quando parou de falar, Gross tinha na verdade enrolado, e o chamado de incompetente da mesma forma. E Gross continuou a falar.
– E é bastante claro que o senhor gostaria e deveria estar em outro lugar agora. Afinal, é aniversário do seu filho, e eu tenho certeza que meu amigo Carlos só o chamou aqui porque queria uma opinião urgente de um perito experiente, e só depois a minha.
O homem arregalou os olhos e abriu a boca de uma maneira cômica. E confesso que eu também não tinha ideia de como Gross sabia aquilo tudo. No momento, pensei que Teixeira havia lhe dado tais informações. Mas logo entenderia que Gross não precisava ser externamente informado, desde que ele tivesse dois olhos plenamente operantes.
– Como sabe que é aniversário do meu filho? - perguntou o perito ainda incrédulo.
Agora Gross parecia estar um pouco mais condescendente, pois deve ter percebido os olhos do homem lacrimejarem.
– Ah, isso? -  começou ele -  É simples. Quando cheguei, passei primeiro na frente da casa. Notei o carro do delegado, e apenas mais outro estacionado logo atrás. Olhando de relance para dentro deste último, pude ver um jaleco branco sobre o banco do carona. E também algo que me pareceu ser a ponta de uma luva de borracha saindo por uma fresta no porta luvas, e protetores de calçados como estes que estamos usando, dentro de uma caixa entreaberta no assoalho.
Além disso, vi no banco de trás uma caixa retangular embrulhada para presente com um cartão. Neste eu só consegui ler a data de hoje e: "Feliz aniversário garotão". Havia mais alguma coisa, mas não pude registrar. Ao entrar aqui e notar que só havia o senhor, Carlos, e o policial à paisana na porta da sala, concluí que o policial veio até aqui junto com Carlos em seu carro. E que, portanto, o carro parado logo atrás do de meu amigo delegado, só poderia ser o seu.
O homem estava estupefato. Mas não só isso, pois enquanto Gross explicava seu raciocínio, um sorriso começou a alargar-se no rosto do homem. E quando Gross terminou sua explanação, qual não foi minha surpresa ao perceber que eu também estava sorrindo? Aliás, quem não o faria?  Era tão inimaginável quanto simples. Nunca tinha visto alguém com tal poder de observação. E além desse dom, Gross ainda demonstrou uma maestria inacreditável ao ligar coisas que ele tinha visto lá fora, com a pessoa aqui diante de nós.
– Fantástico! -  exclamava o perito -  Mas devo apenas observar que poderia ter se enganado, pois o policial poderia ter vindo no meu carro. -  disse ele num tom jocoso. Gross sorriu benevolente.
– Na verdade não. -  disse Gross enquanto Teixeira ria sozinho num canto.
– O policial, que acredito deva ser um novato, – continuava Gross espantosamente paciente –  na ânsia de entrar na casa, deixou sua insígnia no porta copos do carro de Carlos. Arrisco dizer que o delegado saiu primeiro do carro, e conhecendo-o como conheço, deve ter dito ao rapaz para segui-lo depressa. Este por sua vez, no último momento deve ter notado que se esqueceu do distintivo preso em seu cinto, e já que ninguém deveria perceber a presença policial aqui, o tirou, colocando-o no lugar que lhe pareceu mais viável. Se não foi assim, de qualquer forma seu distintivo está lá. E antes que me pergunte como sei que o distintivo não é o do próprio delegado, digo que Carlos não se separa dele talvez nem para dormir. E eu me espantaria se ele não estiver agora sobre seu peito por baixo da camisa.
O delegado Teixeira sorriu alegre, enquanto afagava o volume do distintivo na camisa. Se ele não tivesse feito isso, eu mesma não o teria notado. Pois Teixeira estava com uma espessa jaqueta, cujo zíper subia até o meio. O perito gargalhou.
– Dou a mão à palmatória senhor Gross. Seu poder de observação é incrível. Acho que tirei conclusões precipitadas sobre o senhor e peço desculpas.
– Oque é isso? Não precisa se desculpar. Acontece o tempo todo, e não me sinto ofendido de maneira nenhuma.
– Bom, Dr. Francisco, – disse o delegado Teixeira – como Gross explicou, eu queria a opinião de um profissional antes de tudo, mas agora você já pode ir. Afinal não queremos que seu filho fique decepcionado por seu pai perder mais um aniversário por culpa do trabalho.
– Obrigado senhor. -  disse Francisco feliz da vida. Quando o perito ia saindo do quarto, Gross ainda disse:
  Ah, acho que o garoto vai adorar o notebook.
E antes que o perito pudesse perguntar algo após virar-se visivelmente atordoado, Gross completou:
– Mas se eu fosse você, retiraria a nota fiscal do quebra-sol. Pois se ele encontra-la antes da hora, vai estragar a surpresa.
Francisco riu-se a valer sacudindo a cabeça enquanto deixava o local. Imediatamente Gross trancou seu semblante.
– Vamos trabalhar. – disse. – Onde está o marido?
– No outro quarto. – informou Teixeira.
– Empregados?
– Uma doméstica que mora na casa dos fundos. Ela encontrou o corpo. Está dormindo, pois lhe dei um calmante. Ela não parava de chorar.
– Muito bem. – disse Gross voltando a sua pose com a mão na nuca. – Agora que estou familiarizado com a cena, me conte novamente os fatos, cronologicamente, da maneira que os recebeu.
Teixeira abriu um bloco de notas que retirou do bolso da jaqueta, pigarreou e começou:
– Recebi ontem às quatro da manhã um telefonema do Promotor Eduardo de Souza Andrade, que se encontrava no Rio de Janeiro. Ele estava muito aflito e eu mal conseguia lhe entender. Após acalma-lo o melhor que pude, ele me disse que sua esposa estava morta. A empregada, que mora nos dois cômodos atrás, o ligou às três e meia e lhe contou a tragédia. Entre choros e soluços disse ter acordado com o som de disparos. Olhou no relógio, e eram três e quinze da manhã. Disse a ele que não teve coragem de sair para ver o que era, mas após ouvir o portão dos fundos bater com força, temeu pela patroa, e armando-se de um pedaço de madeira que pegou no quintal, entrou na casa pela porta da cozinha. Segundo ela, as luzes estavam todas acesas. Ela foi andando e chamando pela patroa, mas ninguém respondia. E então ao chegar à porta do banheiro teve de se encostar à parede do corredor, pois nunca havia visto tanto sangue. Segundo oque ela disse ao patrão, quase desmaiara nesse momento. Depois, seguiu até este quarto, e se deparou com esta cena. Disse ao patrão que nem se lembrava de ter chegado à sala e de ter discado para ele. Então o Dr. Eduardo a disse para não fazer, nem tocar em nada. Ordenou que voltasse à sua casa, pois ligaria ele mesmo para a polícia daqui, e que em breve chegaríamos. Ela disse que faria como ele mandou. Então ele me ligou, contando o supracitado e me implorando que tudo ficasse no mais absoluto sigilo. Pediu que eu viesse até à casa, e examinasse a cena como de praxe. E que se fosse imprescindível trazer alguém, que fossem pessoas em quem confio, porém, ressaltou que quanto menos pessoas soubessem do ocorrido, melhor. Explicou-me que poderia haver complicações políticas se o caso fosse divulgado sem o devido cuidado, e disse que assim que chegasse, eu entenderia tudo. Completou dizendo que enquanto conversávamos, estava fazendo sua mala, e logo estaria num voo fretado para cá. Teixeira parou para tomar fôlego. Gross continuava com uma mão na nuca e outra no bolso e de olhos fechados. Eu ouvia atentamente, olhando diretamente para o delegado, tentando poupar meus olhos daquela visão horrenda.
– Eu cheguei aqui por volta das sete da manhã, trazendo o policial Alex comigo. Fui recebido pela empregada, que se encontrava em frangalhos. O rosto estava muito inchado de tanto chorar. Ela tremia muito, e seu relato foi quase uma cópia fidedigna do que o promotor me contou. Mas antes de tomar seu depoimento eu vim ver o corpo, tão logo ela me indicou onde estava. Voltei e lhe interroguei superficialmente na cozinha. Após ver esse detalhe…  – ele apontou para algo no corpo que eu não conseguia ver.
–… E juntando com as recomendações do promotor, que confesso não me agradaram, eu logo pensei em você. Não sei se você sabe Gross, mas nos últimos meses tivemos sérios problemas com grampos clandestinos. Eu me refiro à polícia. Alguns policiais chegaram a ser chantageados por causa de telefonemas gravados. Imagine só! Policiais tendo seus telefones particulares, residenciais e móveis, grampeados. Devido àquelas recomendações do Dr. Eduardo, decidi ir lhe pedir ajuda em pessoa. Mesmo porque, bem sei o quanto você detesta viajar, então imaginei que falando com você pessoalmente, seria mais fácil convencê-lo a vir. Deixei Alex de guarda aqui por volta das oito horas, e me dirigi ao centro, decidido a ir à São Paulo lhe procurar.  Alex me ligou às nove e meia, informando que o Dr. Eduardo havia chegado à casa, e após ver o corpo da esposa, trancou-se no outro quarto, garantindo que não sairia de lá até que eu retornasse. Peguei o voo para São Paulo ao meio dia. Você disse que estaria aqui provavelmente hoje pela manhã. Eu estava aqui na casa de novo à uma e meia da manhã de hoje. Conversei rapidamente com Dr. Eduardo, que se encontrava muito abatido e nada acrescentou ao que já tinha dito. Porém ao lhe falar sobre você, ele disse já ter escutado algo a seu respeito, e que, portanto era melhor esperar que você chegasse para ele explicar tudo de uma só vez. Então depois de algumas providências, que levaram todo o resto da madrugada, eu pedi para o Dr. Francisco vir até aqui para ter as primeiras impressões do crime. Ele é bem experiente, mas quando eu vi as coisas estranhas por aqui, – ele abriu os braços indicando o cômodo – eu sabia que precisaria de você de qualquer forma. – novamente ele tomou um folego.
– Agora meu amigo, o palco é todo seu. – completou o delegado com uma cômica reverência.
– Vejo que não perdeu seu humor desde nosso último encontro. – disse Gross sorrindo enquanto sacudia a cabeça para a graça do amigo.
 – Então vamos lá. Primeiro oque vem primeiro. Os vizinhos não ouviram os disparos?
– Bom, como você deve ter notado, o vizinho da direita, olhando da rua, está há pelo menos cem metros daqui, separado por terrenos vazios. À esquerda ainda não há vizinhos, só a construção adjacente, depois dela já temos uma esquina. É um bairro novo, com promessa de se tornar grande e desenvolvido, os terrenos são bem caros. Não é de se admirar que sejam ainda poucas casas. Sendo assim, o vizinho mais próximo é o da frente, este também sem vizinhos laterais, é o único que poderia ter ouvido os disparos.
– E porque não ouviu? – perguntou Gross.
– Porque estava acontecendo uma festa ontem por lá. O filho do casal passou no vestibular, e decidiram comemorar. A festa se estendeu das onze da noite anterior ao crime, às cinco e meia da manhã do dia fatídico.
– Certo. – disse Gross dando uma sacudida na cabeça, como se tivesse a intenção de fazer toda a súbita informação ajeitar-se em seu cérebro. Eu confesso que ri internamente dessa cena.
– Vamos até o portão dos fundos. Acho que você já viu que foi por lá que nosso visitante entrou, não?
– Sim. A empregada disse que antes dos fatos o portão estava totalmente intacto.
– Certo. Vamos segui-lo então.
Voltamos pelo caminho que viemos. Saímos pela porta da sala e ficamos bem próximos ao muro de pedra enquanto nos dirigíamos ao portão dos fundos. Era uma faixa de grama de uns dois metros entre a casa e o muro. Gross vez ou outra olhava algo no chão, mas sem diminuir o ritmo de seus passos. E depois de uma virada de noventa graus no muro de pedra, alcançamos o portão. Gross o abriu todo e nos colocamos do lado de fora.
– Muito bem, – começou ele – nosso MF entrou por aqui.
– MF? – cochichei em pergunta para o delegado que estava ao meu lado.
– Malfeitor. – respondeu ele – É como Gross chama os autores dos crimes antes de termos condições de dar nome aos bois, se é que me entende. 
Ah, sim. – disse eu sorrindo.
–… então ele virou para a direita, –  continuava Gross – e veio até aqui. Obviamente sabia que a empregada morava na propriedade. Ficou em pé aqui, de frente à janela de seu quarto perscrutando seu sono profundo. Tão logo se sentiu seguro voltou a caminhar. Circundou a casa da doméstica, e seguiu por aqui.
Agora nós pegávamos o lado direito da casa principal, onde logo à frente se podia ver uma porta de alumínio, cuja qual deduzi ser a porta da cozinha. Chegando até ela, Gross examinou a fechadura.
– Não parece ter sido forçada, eu mesmo verifiquei. – disse Teixeira.
– E não foi mesmo. – retrucou Gross – No entanto… Bom, é sugestivo, se não houver mais nada.
Eu não entendi oque ele quis dizer. Franzia meu cenho como se isso fosse me dar uma luz que me fizesse alcançar oque Gross estava pensando. Foi quando o delegado me deu uma leve cotovelada.
– Você começou há pouco com ele não é?
– Uhum. – resmunguei balançando a cabeça.
– Pois dou uma dica para você. – disse ele num tom sussurrante de confissão – Não tente acompanhar o raciocínio dele, pois, ou você enlouquece, ou pede demissão. Gross tem um jeito muito particular de ver as coisas, e praticamente nada do que faz é ortodoxo.
– Já reparei nisso. – disse eu no mesmo tom.
O delegado piscou para mim e continuamos atrás de Gross, que agora estava na frente da casa. Ele olhou, procurou, algumas vezes foi e voltou atrás. Então seguiu em frente circulando a casa em direção aos fundos novamente. Ao passar pela porta da sala olhou o policial Alex, que estava afastado um pouco do batente. Embora seu olhar fosse atento, era nítido que estava cansado da vigilância.
Gross se dirigiu para a porta da sala, e entendemos que ou ele sabia como o assassino entrou, ou tentaria descobrir lá dentro. No entanto, ele parou bem diante do policial e disse naquele tom que o delegado havia usado comigo minutos atrás.
– Se quer mesmo seguir esta carreira, saiba que quando estiver de vigia, não poderá abandonar seu posto para esticar as pernas e se alimentar, até que alguém possa rendê-lo.
O policial abriu bem os olhos, pigarreou, e se não me engano pude ver um princípio de suor em sua testa. Gross não havia falado tão baixo, e bem ou mal, todos nós ouvimos. O pobre Alex desesperou-se, e tentou se explicar.
– Doutor… desculpe-me. Eu não tive a intenção de sair do meu posto. Mas a tragédia já havia acontecido, e eu apenas estava com as pernas doendo e com fome. – seu olhar ia de Gross para Teixeira – E eu não abandonei a propriedade, eu fiz um sanduíche com oque encontrei na geladeira e fui para o quintal comer, não queria contaminar a cena. Perdoem-me se fiz algo errado.
Seu olhar era de súplica, e Gross se tornou mais uma vez paterno.
– Vamos lá, vamos lá, acalme-se. – falou batendo de leve no ombro do rapaz – Eu não disse que estragou nada, eu só lhe dei uma dica. Não estragou, mas poderia ter estragado. Suponha que o MF tenha esquecido algo que o denunciaria. Com certeza ele poderia voltar para recuperar, então entraria pelo mesmo lugar que entrou quando veio cometer o crime, pois você não estaria à vista.
As sobrancelhas de Teixeira se ergueram. Eu entendi. Gross já sabia como o homem entrou na casa. Isso estava me deixando cada vez mais excitada, e eu não via a hora de ele revelar tudo oque sabia. Mas para começar, ele bem que podia dizer como sabia que o policial saiu de dentro da casa, andou e comeu. Não havia pegadas. A casa estava ilhada por um bem cuidado gramado, que ia até o muro de pedra. Fiquei olhando em volta, procurando ver oque Gross viu, mas tão logo ele acalmou o jovem policial, ele fez-nos segui-lo casa adentro. Ele foi até a porta da cozinha e a abriu. Parou no batente, enquanto nós permanecíamos no corredor olhado para ele.
Fiquei ali, atenta a cada movimento dele. Para onde ele olhasse, meu olhar seguia o seu. Muito me estimulava a ideia de que eu pudesse entender como ele trabalhava, como funcionava seu raciocínio. Ele certamente parecia um robô no momento em que se colocava a investigar uma cena de crime. Parecia entrar em transe. Não que se esquecesse de quem estava em volta, mas ali, sozinho em seu elemento, ele agia de forma sistemática, fria, impessoal. Nenhuma ruga que denotasse o menor sentimento se via em sua expressão. Aliás, que expressão? Não havia nenhuma. Sua face era neste momento, uma perfeita escultura de pedra. Seus olhos não brilhavam, seus lábios não tremiam,  e nem mesmo suas sobrancelhas se elevavam. Ele não dava nenhuma pista que fosse, sobre como estava se saindo quanto à sua varredura da cena.
Gross passou um dedo nas dobradiças da porta da cozinha, e esfregou o indicador e polegar. Cheirou, virou a cabeça para nós com o olhar perturbadoramente vazio, e andou pelo cômodo olhando aqui e ali. Depois disso veio em nossa direção, e abrimos caminho para ele. Olhou as paredes do corredor atentamente, voltou à sala e repetiu o exame nas dobradiças da porta desta. Agachou-se e examinou a fechadura, e depois abriu e fechou a porta. Primeiro de maneira natural, depois, bem devagar. Terminado isto, seguiu pelo corredor e entrou no banheiro.
Era uma confusão. Agora, já sabendo oque eu veria quando olhasse lá dentro, eu pude notar mais coisas. Frascos de shampoo e condicionador, secador, pentes e escovas de cabelo; tudo isso estava pelo chão em meio ao sangue. O espelho sobre a pequena pia estava quebrado, e os cacos espalhados por toda parte. Uma toalha de banho jazia à porta do box, parcialmente manchada pelo líquido vermelho. Manchas de sangue se sustentavam nas paredes, e algumas delas, claramente se podia ver terem sido produzidas por uma mão ensanguentada, que fatalmente por ali se apoiou. Gross ia de um lado ao outro, e como no quintal, às vezes voltava num local já visto.
O líquido venoso estava todo pisoteado antes mesmo de Gross adentrar o lugar. Ele o havia olhado atentamente quando ainda estava sob o batente da porta, e agora não se importava em pisá-lo.
Terminado seu exame, voltou ao corredor, logo depois que Teixeira lhe deu um novo par de protetores para os pés. Então se dirigiu ao quarto onde estava o corpo mais uma vez. Agora examinava as paredes, nas quais eu não via nenhuma marca. No entanto, ele se demorou nelas. Examinou a cama com a mesma meticulosidade, foi até o armário com as armas, abriu ambos os criados-mudos, e finalmente parou diante do corpo.
Agora descreverei exatamente oque vi naquele momento. Pois minha primeira impressão com certeza seria incompleta, devido meu choque. A mulher estava sentada numa das banquetas que ladeavam a pequena mesa de madeira. Vendo-se da porta ela encontrava-se de costas. Vestia um roupão rosa bem felpudo, que estava desamarrado e aberto totalmente. Não estava com nenhuma roupa, nem mesmo íntima. Seus cabelos dourados e desgrenhados, precipitavam-se em cachos sinuosos para o chão. Olhando-a de lado, podia-se ver seu corpo quase todo à mostra. Os seios eram fartos, mas não eram caídos como pareciam que deveriam ser, e o único defeito ali era um orifício pequeno e redondo, localizado quase  abaixo do seio esquerdo. Tinha uma bela cintura e seu quadril era bem proporcional. Tinha coxas longas e pés delicados. Na parte externa da coxa esquerda mais um orifício, exatamente igual ao outro. As pernas me pareceram, como estavam dispostas, antinaturais, pois se encontravam cruzadas perfeitamente. Sua pele era bem branca, e continha umas poucas sardas no colo. Seu rosto era muito belo, linhas suaves, curvas delicadas e maçãs um pouco proeminentes.  Havia um ferimento profundo em sua testa, e o sangue teve seu caminho dividido por aquele nariz empinado. Seus olhos eram azuis, e encontravam-se semicerrados, oque lhe conferia uma imagem lúgubre. Sua boca entreaberta, bem como suas bochechas afundadas, deixava transparecer que morrera com profunda dor, como seus dentes cerrados corroboravam. Seu braço direito estava caído sobre a mesinha, e sua cabeça apoiava-se nele horizontalmente. O esquerdo pendia ao longo do corpo com a mão crispada.  
Ainda sobre a mesa de madeira, encontrava-se um tabuleiro de xadrez. As peças estavam espalhadas por sobre a mesa e também pelo chão. Meu amigo deu uma boa olhada nelas e as recolheu uma a uma, colocando-as em pequenos sacos plásticos. Por último, ele abriu a mão direita da mulher, e de lá retirou mais uma peça de xadrez. Com uma atitude teatral, ele ergueu a peça acima da cabeça como um troféu. Um sorriso ensaiou-se em seu rosto, e ele com todo cuidado guardou a rainha branca num saquinho à parte.
Gross já estava saindo do quarto quando algo lhe chamou à atenção. Voltou por um momento, enfiou a mão no bolso de trás da calça e sacou um pequeno estojo de plástico. Deste, retirou uma minúscula pinça, e recolheu algo no batente da porta do quarto. Então saiu. Virou-se à direita, para o segundo quarto. Examinou também o batente em toda a sua extensão, bem como a porta.
– Podem me esperar na sala? – disse ele.
Virei minha cabeça enquanto me dirigia para um sofá, a tempo de ver Gross agachando-se no corredor e andando lentamente de cócoras. Este corredor era acarpetado, e eu não conseguia imaginar oque ele procurava ali agora, já que tudo tinha sido incansavelmente pisoteado.  Ele, no entanto o fez demoradamente, pois só se reuniu a nós cinco minutos depois.
– Pronto! – declarou ele – Podemos passar às testemunhas.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

continuando...

                             Capítulo 2

                                               Em comum


Enquanto andávamos, tentei saber mais sobre o homem que me salvara de uma situação complicada.
– Eu sei que pode parecer impertinente, mas é que sou fã de artes marciais, e oque você fez há pouco, me deixou maravilhada.
Ele sorriu.
– Não é nada demais. – falou ele – Eu sou um eterno aprendiz de Muay Tai. E enquanto pratico, aproveito para desenvolver algumas técnicas que se encaixem melhor ao meu perfil.
– Fascinante! – disse eu com os olhos brilhando. – E você trabalha Sr. Willian?
–  Ah, claro! Todos têm que trabalhar para sobreviver não é? – disse ele sorrindo para mim.
Alguma coisa no seu jeito de falar e em seu sorriso me impediu de perguntar sua ocupação.
– É claro. – respondi.
– Mas e você? Acho que a pequena aventura de alguns minutos atrás não deve render nenhuma grande manchete, não é?
Não, infelizmente acho que… – fiquei emudecida ao me lembrar de que eu não havia comentado nada referente ao meu trabalho. Olhei para ele totalmente perplexa enquanto estacava na calçada. Ele que continuou em frente, parou e virou a cadeira de rodas em minha direção.
– Ah, desculpe-me. – disse ele rindo. – Você não disse que era repórter, eu sei.
– Exato! – foi tudo que saiu da minha boca, enquanto meus olhos ainda se encontravam escancarados.
– Se acalme. –tentou ele me tranquilizar. – Acontece que eu sou uma pessoa que assimila as coisas muito rápido, pelo que me dizem.
– Como assim? – perguntei aturdida.
– Bom, eu não pude não perceber quando você e seus amigos chegaram de carro ao local, já que eu estava na esquina há poucos metros. Oque me possibilitou ouvir a breve discussão dentro do carro, que se referia à câmera do fotógrafo. Você estava do lado de fora, atenta aos movimentos dos rapazes que se encontravam à entrada daquela casa de massagem.
– Assim que vocês chegaram, eu vinha pela calçada, então passei pelo carro antes que este saísse atrás da viatura. Tive tempo de ver o crachá de seu amigo Henrique. "O curioso". É para este jornal que você trabalha não é?
Sacudi a cabeça em resposta.
– Pois então, como eu duvidaria que você estivesse atrás de uma matéria? Eu bem conheço os repórteres desse  jornal. São como abutres que se tornam excepcionalmente ágeis, ao menor cheiro de podridão. Sem ofensas, por favor.
Estaria sendo hipócrita se me ofendesse. Afinal, eu sabia muito bem que o jornal era sensacionalista. E que repórteres e fotógrafos chegavam a passar dias e noites de tocaia, apenas esperando uma oportunidade de manchar o nome de alguém que se encontrava num dia ruim.
– Ofensa nenhuma. – respondi. – Confesso que não é oque eu quero exatamente, mas apenas um degrau. – justifiquei-me.
– Entendo.
– O senhor me assustou! Achei que era vidente ou algo do tipo. - disse eu sorrindo.
Ele gargalhou com gosto.
– Já me disseram isso mais de uma vez. E acho mesmo que conseguiria enganar muita gente se enveredasse por esse lado. Mas existem ocupações mais honrosas para quem sabe observar oque deve, sem que seja a de tomar dinheiro de incautos.
Novamente minha curiosidade me assaltava. Sentia como se algo dentro de mim empurrasse a pergunta garganta acima.
– Não consigo pensar em alguma assim, de repente. – arrisquei.
– Sua curiosidade te maltrata não é Alessandra? – disse ele sorrindo.
Eu apenas levantei as sobrancelhas em sinal de não saber do que ele estava falando.
– Ora, vamos. – ele disse – Você é uma pessoa ansiosa, inteligente, sonhadora, batalhadora, destemida, um tanto insegura… Como poderia não ser dominada por uma curiosidade tão grande, que você sente que na maioria das vezes não pode com ela?
Ele falou de uma forma muito rápida. Como quem lê uma lista para alguém que já conhece a maioria dos itens.
– Senhor Willian! – exclamei parando novamente de andar.
– Oque foi? – perguntou ele virando-se novamente.
– O quê foi? O senhor acaba de me descrever quase por completo. Já percebi que é um bom observador, mas isto… É demais pra mim.
Ficamos nos olhando por uns segundos.
–  Você tem que me ensinar a fazer isso. – disse eu com o semblante sério. Mas ele entendeu que era uma falsa raiva. Rimos muito por alguns segundos enquanto eu novamente me juntava a ele.
– Não sei se é algo fácil de aprender, mas posso te dar umas dicas.
– Logo depois de me explicar como descobriu tanto sobre mim, não é mesmo? – indaguei num tom de súplica.
Ele sorriu alegre.
– Pode ser. Mas tem que ficar para outro dia. Como eu disse, tenho assuntos urgentes, e chegamos à minha bat-caverna.
Desviei o olhar rindo da piada e vi então onde ele morava. Não era uma casa, e sim um prédio. De tão velho e mal conservado, me pareceu ter mais de cem anos.
– Vai mesmo me maltratar assim senhor Willian?
– O primeiro passo é controlar sua ansiedade, e também sua curiosidade. Se puder fazer isso, ai poderemos progredir. E a propósito, pare com o "senhor Willian". Da minha parte já lhe considero uma amiga, portanto, é apenas Willian, tudo bem?
– Certo. – respondi
– E para provar que já lhe considero uma amiga, vou satisfazer uma de suas curiosidades agora mesmo.
Uma energia me percorreu o corpo como uma corrente elétrica, e entusiasmada perguntei:
– Qual?
– Você há pouco não se aguentava de vontade de me perguntar no que eu trabalho. Pois bem. Eu sou um decodificador de situações. E sou solicitado quando estas situações apresentam detalhes, que maculam a reputação melindrosa das pessoas que as tentam entender.
Fiquei ali em pé olhando para ele com uma cara engraçada.
– Me parece que o senh… você… gosta de falar por entrelinhas. – disse eu sincera. – Mas acho que entendi. Você é um detetive, não é isso?
– Por favor! – disse ele levantando a mão com uma expressão de desagrado no rosto. – Eu não gosto de rótulos. E esse termo já foi tão amplamente usado, que se tornou uma espécie de vírgula para mim. Além disso, "detetive" é um substantivo muito rudimentar para denominar oque eu faço.
Nesse momento eu pensei brevemente que Gross era um tanto presunçoso. Afinal, para mim, detetive era até mesmo um adjetivo dos mais honrosos para quem o detivesse. No entanto, não dei alarde da minha impressão.
– Bom, mas se é assim, com certeza você é um… – procurei a palavra mentalmente – consultor. Não trabalha para polícia oficialmente, não é assim?
Ele me olhou com um olhar curioso. Parecia surpreso com minha dedução.
– Como chegou a isso? – perguntou.
– Ué! Da maneira como descreveu sua ocupação, e como se referiu aos "que tem a melindrosa reputação maculada", só pude pensar que se referia a polícia.
Agora seus olhos brilhavam de excitação.
– Excelente dedução! Maravilhosa! – disse ele com sinceridade. – Começo a ver que você pode ter um futuro nesse campo.
Não pude deixar de sentir pelo calor nas bochechas, que estava corada. Contudo, tentei minimizar meu feito, enquanto por dentro explodia em alegria.
– Estava bastante óbvio Willian.
– Justamente. É oque vivo dizendo aos que me perguntam como cheguei a esse ou aquele resultado, que para eles até aquele momento, era insolúvel.
– Ah Willian, – protestei – mas não queira comparar oque acabo de deduzir com oque você fez há pouco. Descrever a personalidade de uma pessoa como fez, está a anos-luz da bobagenzinha que eu fiz.
– Talvez, mas você leva jeito menina. – falou brincalhão – se tiver interesse no ramo, pode se dar muito bem.
– Obrigada!
– Bom, agora preciso mesmo entrar. Assuntos urgentes me esperam.
– Uma grande conspiração a ser revelada, talvez? – brinquei.
Ele me olhou de repente e muito sério com seus olhos cinza. Depois, apoiou as mãos nos braços da cadeira e se inclinou para frente olhando para todos os lados, verificando se ninguém estava por perto. Novamente pôs os olhos em mim e estudou meu rosto rapidamente. Nesse momento meu sorriso de zombaria já se desfizera, e uma sensação de perigo me aflorava no estômago me causando desconforto.  
E então, como uma criança que viu uma careta qualquer dos pais, ele desatou a rir histericamente.
– Desculpe. – disse passando a mão na testa – eu não resisti à tentação.
– Bobo! – falei. Pra logo em seguida rir também. – Tudo bem então. Ei, por que não fica com meu cartão? Assim, quando estiver disponível para conversarmos mais você me liga. E não pense que vou me esquecer. Você me deve umas aulas de dedução lógica. –  declarei.
– Tudo bem. Talvez eu não demore a ligar, ultimamente não tenho tido muitos compromissos. É oque acontece quando a ciência avança, e em contra partida os bandidos fogem das salas de aulas cada vez mais jovens. Acaba-se tendo menos crimes bem arquitetados, oque por sua vez, resulta em menos trabalho para pessoas como eu.
– Uma pena – lamentei. Para depois perceber minha imprudência. – Não que eu esteja desejando que mais e mais crimes espetaculares aconteçam. – me apressei em dizer – Quer dizer, se não acontecem você fica sem poder agir, mas se acontecem…
– Calma Alessandra. – disse ele rindo – Eu entendi oque quis dizer.
Sorri sem graça.
– Bem, boa noite Willian, e não deixe de me ligar.
– Não se preocupe, eu com certeza ligarei. E como você vai para casa? – perguntou ele.
– Ah, não se preocupe, vou pegar um táxi.
– Tudo bem então. Se cuide. E tente não andar desacompanhada por becos mal frequentados à uma hora dessas.
Sorri para ele e juntei as mãos fechando os olhos, num gesto de promessa.
– Tchau. – disse eu enquanto me virava para seguir meu caminho.
– Tchau.
Comecei caminhar e de repente me veio aquela sensação inquietante de que eu havia visto dois degraus antes do portão de entrada de onde Gross morava. Não parecia haver um porteiro ou alguém para ajuda-lo a entrar. E pelo que pude perceber, o portão da garagem dava direto para o subsolo. Eu havia dado uns vinte passos à frente após ter me virado para rua. Não aguentando a ideia de que ele certamente precisaria de ajuda para entrar, e talvez por querer muito fazer algo para amenizar minha dívida pessoal com ele, eu me virei.
Minha cabeça ia de um lado para o outro esquadrinhando a rua a minha frente. O homem havia desaparecido! Mas como era possível? Não tinha passado nem meio minuto desde que virei às costas para ele. Voltei apressadamente até à frente de seu prédio e olhei em volta. Mas ele simplesmente evaporara. Fiquei muito intrigada com isso. Mas como assim que o deixei comecei a pensar na desculpa que inventaria ao meu editor por ter sumido o resto da noite, resolvi que era possível alguém do prédio ter-lhe ajudado a entrar. Peguei um táxi na esquina e fui para casa. Eu merecia sem dúvida um bom banho e um belo e enorme copo de chocolate quente depois de tanta agitação. Quando finalmente me deitei na cama, a cena de Gross nocauteando aqueles homens não saía da minha cabeça. Foi realmente inacreditável, e comecei a pensar se isso não daria uma boa matéria de alguma forma. E a partir daí comecei a imaginar Gross como uma espécie de vigilante noturno, que em meio à penumbra da cidade adormecida, percorre as ruas em sua veloz cadeira de rodas, trazendo justiça aos que merecem. Podia até vê-lo com uma máscara no rosto, sua cadeira de rodas motorizada e escapamentos que soltavam fogo e fumaça pelo cominho. Mas neste momento creio que já estava em sono profundo, pois só me lembrei destas últimas cenas quando tomava café da manhã no dia seguinte.
Meu dia começou como era esperado. Rodolfo estava uma fera. Não particularmente comigo, mas sobrou para todos os envolvidos. Uma vez que Henrique e Antônio, não conseguiram seguir a viatura por muito tempo. Embora Rodolfo não tivesse brigado comigo diretamente, ficou muito bravo por não ter conseguido oque queria. Nem sequer deu atenção à minha explicação, tampouco ao fato de que eu quase fora violentada. Senti-me totalmente deslocada e com muita raiva pela sua indelicadeza. Porém, usei a raiva que senti naquele momento, para me motivar. Eu iria a qualquer custo conseguir uma matéria hoje. – Uma matéria não! – me censurei – Eu vou conseguir "A primeira página". O problema era: Como? Oque eu poderia explorar de tal forma a ser merecedor da primeira página do jornal?
Gross não me saía do pensamento e isso me confundia e distraía. Talvez se eu o encontrasse de novo eu pudesse fazer isso parar. Ou quem sabe ele poderia saber de alguma coisa interessante que me rendesse alguma matéria. Isso me pareceu pouco provável, já que sua opinião sobre o jornal era péssima, mas eu estava sem inspiração alguma. Resolvi então ir visita-lo. No começo isso me pareceu um pouco inconveniente, mas também era verdade que fiquei preocupada após ele se pulverizar na noite passada. Teria naturalmente que levar algo como agradecimento pela ajuda na noite passada; mas o quê? Eu não sabia nada sobre ele; se bebia, se gostava de música, sua comida preferida, absolutamente nada.
Quando voltei do almoço, pensei que eu simplesmente poderia convidá-lo para jantar, talvez em casa. Eu não era uma excelente cozinheira, mas me virava bem. Era uma boa ideia.
Às cinco horas, como nada mais era urgente, deixei o jornal e fui fazer umas compras para o jantar. Caso ele não aparecesse, ao menos eu estaria dando uma mão para o Marcelo com o pouco que podia. Claro que corria o risco de Gross não estar em casa, afinal, talvez ele tivesse saído para resolver alguma pendência, já que disse ter assuntos a resolver. Mas valia a pena arriscar. Se ele não estivesse lá, esperaria seu telefonema então.         Mas antes eu precisava de um caixa eletrônico. Estava com pouco dinheiro, e dependendo do gosto do meu convidado, talvez eu precisasse estar mais bem preparada.
Logo na esquina da rua do jornal, havia uma filial do meu banco. Dirigia-me ao caixa procurando meu cartão magnético em minha bolsa, e pensando como foi bom conseguir esse emprego no jornal, pois o pouco que consegui economizar na lanchonete, já estava no fim. Quando avancei para a máquina meus olhos percorreram a rua aleatoriamente.
Eram tantas pessoas que eu ficava imaginando todos como formigas numa cúpula de vidro. Às vezes esse vai e vem desenfreado de pessoas em São Paulo, me sufocava ao ponto de eu querer sumir pra uma cidade mais tranquila. Oque naturalmente era um contrassenso, já que eu havia acabado de fugir de uma. Esse pensamento me divertiu.
Havia três pessoas na minha frente formando uma pequena fila. A senhora que usava o caixa quando cheguei, estava com certeza tendo dificuldades. Entretanto, ninguém parecia se importar em esperar, e tampouco em ajuda-la. Os primeiros da fila eram dois homens que estavam conversando algo aparentemente sério. Na minha frente, uma mulher retocava a maquiagem despreocupadamente. Resolvi ajudar à senhora, já que esperar, não era algo que me agradasse fazer. Saí da fila e me encaminhei para o caixa. Mas ao me aproximar dos homens que estavam na ponta da fila, eu tive um choque. Ali, conversando com outro homem, estava Willian Gross. Eu deveria ter ficado feliz, já que não teria que ir até a casa dele. Embora ele parecesse ocupado, talvez não fosse nada sério, e ele aceitasse meu convite. Entretanto leitor, quando eu disse que levei um choque ao vê-lo, foi pelo simples fato de que Gross encontrava-se certamente em pé, sem nenhum apetrecho que isso lhe permitisse e se apoiando sem dificuldade alguma em ambas as pernas.
O outro homem estava de costas para mim. Gross conversando com ele, estava de frente. Eu estaquei de perplexidade quando o vi. Isso deve ter-lhe chamado à atenção, pois ele imediatamente dirigiu o olhar para mim. Sem parar de falar com o outro homem, o olhar de Gross me atingiu quando me percebeu, mas não se alterou. Parecia até que ele não havia me reconhecido. Voltou a olhar para seu interlocutor, e continuou a falar. Mas no momento em que o homem abaixou a cabeça para jogar seu terminado cigarro no chão, ele novamente me olhou. Sua testa franziu-se, as sobrancelhas juntaram-se, sendo que a esquerda se elevou. Eu não entendia oque estava acontecendo, mas como sempre fui prática, consegui  reprimir meus instintos, e simplesmente retomar minha caminhada para ajudar a pobre senhora que já se desesperava com o caixa eletrônico. Passei a meio metro de Gross sem olha-lo, e fui fazer minha boa ação do dia.
Quando terminou de fazer oque queria, a velhinha me agradeceu efusivamente. Voltei para o meu lugar na fila ainda sem olhar para Gross, e lá fiquei imóvel até que o homem que o acompanhava fizesse um saque, e os dois saíssem andando tranquilamente. Depois disso, abri mão de usar o caixa e fui sorrateiramente seguindo os dois homens pela rua. Eles entraram em uma lanchonete dois quarteirões depois. Fizeram pedidos e sentaram-se em uma mesa próxima à calçada. Eu fiquei atocaiada na esquina, a espera de uma chance de interpelar Gross. Eles conversaram por uns dez minutos, e o outro homem, um sujeito alto e de rosto amigável, parecia muito preocupado. Gross dizia alguma coisa com aquele seu ar despreocupado. Entretanto, o homem falava veementemente, como se Gross não entendesse a gravidade do fato.
Logo que o homem se levantou e apertou a mão de Gross, eu fiquei alerta. Ele pagou os lanches e ambos saíram para rua lado a lado. Eu os seguia a uns quinze metros de distância, usando os transeuntes como camuflagem. Duas ou três vezes Gross, olhou para trás. Não exatamente para mim, mas virou a cabeça como se acompanhasse os carros passando, ou examinasse as vitrines. Logo depois, o homem apertou a mão de Gross muito agitado, e ergueu o braço para um táxi que passava vazio. Gross continuou andando e virou na esquina. O homem então entrou no táxi, e eu apertei o passo para alcançar Gross. Virei na mesma esquina e fiquei aturdida. – Ele sumiu! – falei sem querer. Não havia tantas pessoas naquela rua. E ele não teve tempo para anda-la até o final. Como poderia novamente ter evaporado no ar? Nesse momento comecei a pensar que algo de muito estranho circundava Willian Gross.
Com os ombros caídos, e totalmente desolada, me dei por vencida. Teria que voltar ao jornal sem uma matéria para escrever, e sem ter encontrado Gross. Mas ele que não pensasse que eu desistiria. Montaria guarda na frente de seu prédio se fosse preciso, pois ele tinha muito oque me explicar. Afinal de contas… – nesse momento, fui interrompida por uma voz que falava comigo.
– Ah, essa curiosidade negligente. – a voz era inconfundível. Virei-me para ver a face sorridente de Willian Gross me olhando do alto do seu um metro e oitenta e dois. Fechei meu cenho e fiquei ali o olhando, ao mesmo tempo em que cruzei os braços a espera de uma explicação plausível.
– Hum! – resmungou ele colocando a mão no queixo. – Parece que você precisa de um argumento sólido e franco sobre alguma coisa.
– No mínimo!
– E sobre oque seria?
– Ainda pergunta? – indaguei espantada.
– Mas é claro! Eu tenho vaga noção do que seja, mas como sei que não fiz nada de errado, é bem provável que eu esteja enganado.
– Pois muito bem, - comecei visivelmente sem paciência – poderia me explicar por que mentiu sobre ser deficiente?
Ele riu virando a cabeça e depois se voltando para mim. Sentia que meu rosto estava em chamas nesse momento.
– Eu posso lhe dizer por que menti, assim que você me disser quando foi que eu disse ser deficiente.
Espantei-me um pouco. Claro que ele não havia dito, mas era tão óbvio na noite anterior, que me surpreendeu e irritou o seu cinismo.
– Ora, e era necessário dizer? Para mim era evidente, já que você frente a dois homens enormes não moveu as pernas um centímetro. Sem contar que permaneceu em sua cadeira o tempo todo, desde que lhe vi a primeira vez, até o momento em que desapareceu por encanto ontem a noite… –  nessa hora percebi como lhe foi fácil levantar da cadeira e entrar rapidamente no prédio. Coisa que me deixou confusa na hora, e que deve ter lhe divertido muito.
– Você é um cínico Willian! – continuava eu com ira crescente.
– Alessandra, eu nunca disse que era deficiente, você viu os dados, e os julgou como sua mente está programada para julgar. Eu não posso ser responsabilizado por suas conclusões errôneas.
Considerei por um momento oque ele disse. Mas o fato é que eu odiava estar enganada.
– Veja. Eu estava na frente daquela casa de massagem a serviço, e a cadeira de rodas era meu disfarce. Eu não poderia, estando ainda exposto, sair do meu disfarce. Bem como não poderia deixar aqueles idiotas lhe fazerem mal. – ele tinha um tom de voz grave, mas suave, envolvente. E era muito convincente. Sem que eu percebesse, minha raiva foi cedendo gradualmente. 
– Mas e na frente do seu prédio? Poderia ter me contado.
– Poderia. Entretanto, eu havia acabado de lhe conhecer. E confesso que as pessoas de um modo geral, tem o péssimo hábito de me decepcionar. Sou bastante reservado, e se eu não estiver trabalhando, será muito raro me ver caminhando pelas ruas. As pessoas me chateiam com suas lamúrias e seu intelecto, que de modo geral, é limitado.
Ainda um pouco ofendida, talvez por ter que admitir que me precipitei nas conclusões, me rendi.
– Tudo bem Willian. Deixe pra lá.
– Não fique brava comigo. Na vida que levo, não posso confiar em nada que não conheça muito bem.
– Entendo. – em seguida meu lado prático retomou o controle. – Eu estava indo até sua casa. Quem sabe você queira jantar comigo. Eu não gosto de me sentir em dívida com as pessoas, e embora eu talvez eu nunca possa lhe pagar em proporção real a sua ajuda… – disse eu agora condescendente.
– Seria ótimo! –exclamou ele.
Tomamos um táxi logo à frente após ele insistir. Dei o endereço do apartamento de Marcelo ao motorista, e fiquei vendo a imagem borrada da cidade escurecer com o fim do dia. Não dissemos palavra durante a curta viagem. Marcelo ainda não havia chegado, oque era bem comum, pois ele trabalhava até bem tarde no escritório quase todos os dias. Foi Gross quem quebrou o silêncio enquanto eu descascava as batatas.
– Como vão as matérias? – perguntou.
– Bom, pra falar a verdade, eu não sou uma repórter. – disse eu. E depois comecei naturalmente a lhe contar a minha história. Gross era um tipo de pessoa que inspirava confiança ao se falar com ele. Sentia-me muito à vontade em lhe contar cada pormenor da minha vida, como se o conhecesse há décadas. Ao terminar meu relato, já estávamos jantando e a conversa fluía num tom mais animado, pois eu falava de meus sonhos ambiciosos. Gross me olhava atencioso enquanto eu falava, mas parecia que estava me estudando. Já que seus olhos se demoravam em certos pontos. Nos meus olhos, na minha boca, mãos, etc. Ele acompanhava meus gestos com os olhos injetados entre uma garfada e outra.
Ele estava vestido com uma camisa num tom vinho e uma calça jeans escura, quase preta. Seu rosto era determinado, suas sobrancelhas expressivas só faltavam falar e o cabelo era bem baixo. Sua altura de um metro e oitenta e dois, arrematava o efeito de respeito que sua figura causava. E ainda tinha a sua atitude. Gross dava a ideia, quando queria, de tratar-se de uma pessoa fria, programada, sem sentimento algum. Isso às vezes me incomodava um pouco, pois apesar de ser muito prática, também havia em mim um lado emocional muito forte.
– Oque espera conseguir neste jornal? – inquiriu ele.
– Experiência. Para depois conseguir emprego em outro lugar. Quero poder chegar a me tornar uma correspondente internacional, entende? Estar nos lugares em que as coisas acontecem, ação, aventura, suspense e perigo.
– Acha mesmo que precisa sair do país e trabalhar para um grande jornal ou canal de televisão para isso?
– E onde mais encontraria tal ação? Não que eu esteja reclamando da calmaria, mas neste país não acontece nada. – disse com sinceridade.
Gross levantou a sobrancelha esquerda olhando de soslaio para mim.
– Só porque os jornais, revistas e a tv não mostram nada, não significa que nada acontece.
Achei curioso seu comentário, e senti novamente aquela sensação causada por uma pequena fagulha de adrenalina me percorrendo o corpo.
– Ah, eu sei que nem tudo oque acontece é noticiado, mas não acredito que grandes coisas aconteçam por aqui.
– E se eu lhe fizer uma proposta? Teria a coragem de largar tudo para que eu lhe mostre as entranhas das verdadeiras notícias deste país?
Não pude controlar a excitação, e me remexi na cadeira.
– E como seria isso? – perguntei interessada.
– Eu contrato você agora como uma espécie de assistente pessoal, e você me acompanha onde eu for. Se aceitar, já teremos passagens aéreas para o extremo do país logo mais pela manhã.
– Tão rápido assim? Pensei que estivesse sem muito oque fazer.
– Estava. Porém aquele homem com o qual me viu conversando, é um delegado de uma bela cidade no norte do país. Aconteceu algo grave por lá, e que deve ser mantido em sigilo absoluto. E é nessas horas, em que sigilo, mas também saber decifrar situações estranhas são necessários, que eu sou solicitado.
– Mas oque aconteceu por lá? – perguntei curiosa e já com os olhos vidrados.
– Não sei muito, uma mulher foi assassinada. Esposa de alguém importante. Mas como não deve vir a público, e não confiaram nem no telefone, o meu amigo, delegado Carlos Teixeira, veio em pessoa pedir minha colaboração.
– Nossa! Isso é muito instigante! – fiquei inevitavelmente maravilhada. – Mas não sei se posso sair da cidade assim, é o único emprego que arrumei, tenho contas a acertar com o Marcelo…
– Eu começarei lhe pagando quinhentos reais por semana, e lhe adianto as duas primeiras. Oque acha?
Odiava quando meus olhos delatavam minha reação. Lá estavam ambos arregalados, prontos a fazer com que Gross reconsiderasse.
– Esse espanto tão natural é um sim? Suponho que seja. – disse ele abrindo seu largo e amigável sorriso.
Gross me adiantou de fato duas semanas de pagamento, ação que me possibilitou pagar a Marcelo o que lhe era devido e resolver algumas pendências. Arrumei meus poucos pertences numa mala, e liguei para Rodolfo, que não ficou muito feliz com oque eu disse. É claro que eu não consegui dormir naquela noite, de tão ansiosa que estava para me embrenhar nas mais alucinantes aventuras. E assim, às cinco da manhã do dia seguinte, levantava voo nosso avião, rumo a um acontecimento que eu jamais poderia esquecer.
Quase quatro horas depois, desembarcamos. E fomos recebidos no aeroporto por um homem alto e muito forte. Ele se vestia normalmente, mas tinha uma postura e modos, que me levaram a crer que se tratava de um policial à paisana. Gross foi cumprimentado com alegria e admiração.
Eu ainda não entendia por que Gross simplesmente não veio com o tal delegado, quando este retornou, mas oque eu sabia sobre a maneira de Gross trabalhar? Nada! Então achei melhor esquecer o assunto.
Fomos rapidamente apresentados, e o homem não perdeu um minuto se quer. Entramos em seu carro e mal havíamos afivelado os cintos, quando ele saiu a toda, dirigindo veloz e habilmente pela cidade. Rodamos por meia hora até que chagássemos ao nosso destino. Tratava-se de um hotel bem bonito e moderno.
– Esperarei o senhor aqui para leva-los ao local. – disse o motorista.
– Perfeito. – respondeu Gross
Registramo-nos no hotel, subimos para nossos quartos e Gross recomendou que não desfizesse as malas ainda. Deveríamos sair rapidamente. Assim, em dez minutos, já estávamos novamente na estrada. Eu confesso que não me lembro de muita coisa dessa parte. Tudo que me lembro, é que o sol já estava alto e brilhante no céu quando Gross me cutucou.
– Ei! Chegamos.
Pisquei e esfreguei os olhos ao descer do carro um pouco assustada por ter simplesmente dormido. Em minha defesa devo dizer que só havia voado uma vez de avião, e a experiência não fora muito boa. Logo, eu não dormira durante a viagem que cruzou o país. Estava cansada mental e fisicamente. Mas o cochilo de duas horas, pelo que pude conferir em meu relógio, me restaurara as forças, e agora eu estava totalmente energizada.
– Parei longe para não chamar a atenção. – disse o motorista – A rua é esta. O Dr. Teixeira está na casa. É o número 915. Eu tenho que retornar à delegacia.
– Obrigado. – respondeu Gross. E com um aceno de mão nos despedimos.
Chegando ao número 915 daquela rua eu notei a casa. Era bem ampla. Uma enorme janela de frente para a rua indicava que ali deveria ser a sala, e outra ao lado, reconheci como sendo a da cozinha. Não se viam portas, e deduzi que a entrada era lateral. O muro de pedra era tão limpo quanto alto, e o portão me pareceu ter custado uma pequena fortuna. A casa era pintada num tom verde que agradava os olhos,  o telhado era visivelmente precedido por uma laje. Gross andava lentamente. Havia dois carros parados à entrada, juntos à calçada.
– Vamos ver se entramos pelos fundos. – disse Gross ao perceber algumas silhuetas nas janelas das casas vizinhas.
Contornamos a casa sem dificuldade, pois uma construção em andamento nos dava passagem, já que ainda não haviam levantado os muros. O muro de pedra do 915 cercava toda a propriedade, sendo que exatamente atrás, havia um pequeno portão que dava num terreno vazio, no qual estávamos agora. Gross tentou o portão, e este se abriu quando o tocou. Então ele e eu, observamos a fechadura arrombada. Gross apontou para que eu prestasse atenção ao fato, mas era desnecessário. Internamente eu já teorizava os passos do assassino.  
Havia uma casa pequena nos fundos do grande quintal. Tinha dois cômodos e um banheiro. A casa que vi da rua estava uns dez metros à frente. Escolhemos o lado esquerdo do terreno para seguir, em cujo qual, se vendo da rua, deveria ficar a sala da casa principal, bem como a porta de entrada para a residência.